Quanto,
porém, à origem dos ídolos, é recebido de consenso virtualmente público o que
se contém no livro da Sabedoria de Salomão [14.15], isto é, que seus primeiros
autores foram os que conferiram esta honra aos mortos no intento de lhes
cultivarem, supersticiosamente, a memória. E admito, sem reservas, que antiquíssimo
foi este pervertido costume, nem nego ter ele sido um facho em virtude
do qual mais se incendeu a inflamada paixão dos homens para com a idolatria.
Todavia, não concedo que esta foi a fonte primeira desse mal.
Ora, que os
ídolos já estivessem em uso antes que viesse a prevalecer este desmedido anseio
em consagrar imagens dos mortos, de que se faz freqüente menção nos escritores
profanos, evidencia-se de Moisés. Quando narra que Raquel furtara
os ídolos
do pai [Gn 31.19], não fala de outra forma senão de um vício generalizado.
Do quê é
lícito concluir que a imaginação do homem é, por assim dizer, uma perpétua fábrica
de ídolos. Após o dilúvio, havia um como que renascimento do mundo. Entretanto,
não passam muitos anos antes que, a seu prazer, os homens inventassem
para si deuses.
E é de
crer-se que, vivendo o santo patriarca ainda até esse tempo, seus descendentes se
entregaram à idolatria, de sorte que, não sem a mais cruciante dor, visse com os
próprios olhos a terra se poluindo com ídolos, cujas corrupções purgara Deus, havia
pouco, com juízo tão horrível. Ora, já antes de nascido Abraão, Tera e Naor eram
adoradores de deuses falsos, como o atesta Josué [24.2]. Quando a
progênie de Sem tão logo veio a degenerar-se, como haveremos de julgar os
descendentes de Cão, que na pessoa do próprio pai já bem antes foram
amaldiçoados?
Essa é a
pura verdade. A mente do homem, visto estar abarrotada de orgulho e temeridade,
ousa imaginar a Deus, na medida de seu alcance; como padece de embotamento,
ainda pior, é levada de roldão pela mais crassa ignorância, em lugar de
Deus concebe a irrealidade e a fútil aparência.
A estes males
se acrescenta nova iniqüidade, a saber: o homem tenta exprimir Deus em sua
obra segundo o concebera interiormente. Logo, a mente gera o ídolo, a mão o
dá à luz. Sendo esta a origem da idolatria: que os homens não crêem que Deus
esteja com eles, a não ser que sua presença lhes seja exibida em forma
concreta, o demonstra o exemplo dos israelitas. “Não sabemos” diziam
eles, “o que haja acontecido a esse Moisés. Faz-nos deuses que vão adiante de
nós” [Ex 32.1]. Sabiam, realmente, que era Deus aquele cujo poder haviam
experimentado em tantos
milagres;
porém não confiavam que ele estivesse perto deles, salvo se pudessem, com os
olhos, contemplar uma representação corpórea da figura, representação que
lhes fosse testemunho de um Deus a dirigi-los. Portanto, queriam
reconhecer que Deus lhes era o guia do caminho através de uma imagem que lhes
fosse à frente.
A
experiência de cada dia ensina isto: que a carne está sempre inquieta até que haja
conseguido uma fantasiosa representação semelhante a si mesma, em que vãmente
se console como em real imagem de Deus. Em quase todos os séculos, desde
que o mundo foi criado, para que obedecessem a esta cega obsessão, os
homens
têm erigido
representações visíveis, nas quais criam Deus para que esteja diante dos olhos
carnais.
João
Calvino