Aqui se
põem a ladrar alguns cães, dizendo que, embora não ousem arrebatar abertamente
sua divindade, furtivamente surrupiam sua eternidade. Pois, dizem eles, a
Palavra começou realmente a existir então, quando Deus abriu seus sacros lábios
na criação do mundo. Mas, de forma mui insipiente, atribuem à substância de
Deus mudança desse gênero. Ora, como os designativos de Deus que lhe contemplam
a operação externa começaram a ser-lhe atribuídos a partir da existência da
própria obra, razão pela qual é chamado criador do céu e da terra, assim a
piedade não reconhece nem admite nenhum título que sugira haver ocorrido
algo novo a Deus
em si mesmo.
Porque, se nele tivesse havido algo adventício, cairia por terra essa
afirmação de Tiago [1.17], de que “todo dom perfeito promana de cima e
desce do Pai das luzes, em quem não há mudança, ou sombra de variação”. Logo,
longe de nós tolerar a idéia de um começo dessa Palavra que sempre foi não só
Deus, mas
também,
depois, o Artífice do universo.
Mas, de
maneira particularmente sutil arrazoam que Moisés, ao narrar que Deus falou
pela primeira vez então, está ao mesmo tempo inculcando que nele antes não existia
nenhuma Palavra, do que não pode haver nada mais pueril. Ora, só porque algo
começa a manifestar-se em determinado tempo não se deve por isso concluir
que jamais
existira antes. Eu, porém, chego a conclusão bem diferente: como no exato
momento em que Deus disse: Haja luz, o poder da Palavra tenha emergido e se
tenha patenteado, ela já existia muito antes. Mas, se alguém perguntar quanto tempo
antes, não se achará nenhum começo. Pois o Verbo não determina limite
definido de
tempo quando ele próprio diz: “Pai, glorifica ao Filho com a glória que possuí
em ti no início, antes que fossem lançados os fundamentos do mundo” [Jo 17.5].
Tampouco deixou João de levar isto em conta, pois antes de descer à referência
à criação do mundo [Jo 1.3] diz que a Palavra estava no princípio com Deus
[Jo
1.1]. Reiteramos,
pois, uma vez mais, que a Palavra de Deus concebida além do começo do tempo
subsistiu junto a ele perpetuamente, do quê se comprova não só sua eternidade,
como também sua verdadeira essência e sua deidade.
João
Calvino