Porquanto,
se estas evidências não satisfazem aos judeus, não vejo com que sutilezas
possam evitar o fato de que, com tanta freqüência, na Escritura o
Senhor se apresenta na pessoa de um Anjo. Diz-se haver aparecido um Anjo aos
santos patriarcas. O mesmo atribui a si o nome do Deus Eterno. Se alguém
objeta, dizendo que isto se diz com respeito à função que o anjo desempenhava,
a dificuldade de modo algum fica assim resolvida. Pois um servo não iria
arrebatar de Deus sua honra, permitindo que lhe fosse oferecido um sacrifício.
Com efeito, negando-se a
haver de
comer pão, o Anjo ordena que o sacrifício fosse oferecido ao Senhor [Jz 13.16].
A seguir [Jz 13.20], prova, pelo próprio fato, que ele é realmente o Senhor. Desse
modo, Manoá e a esposa concluem, desta evidência, que haviam visto não simplesmente
um anjo, mas a Deus. Daí esta exclamação: “Haveremos de morrer,
porque
vimos a Deus” [Jz 13.22]. Quando, porém, a esposa responde: “Se o Senhor nos
quisesse matar, não teria recebido de nossa mão o sacrifício [Jz 13.23],
confessa com certeza que aquele que antes disse ser um ajo era
realmente Deus. Além disso,
agrega que
a própria resposta do Anjo dirime toda dúvida: “Por que perguntas por meu
nome, que é maravilhoso?” [Jz 13.18].
Tanto mais
abominável foi a impiedade de Serveto, quando asseverou que Deus jamais se
manifestara a Abraão e aos demais patriarcas; ao contrário, em seu lugar fora
adorado um anjo. Reta e sabiamente, porém, os doutores ortodoxos da Igreja interpretaram
que esse Anjo era Príncipe, a Palavra de Deus, que já então, em um
como que
prelúdio, começou a exercer o ofício de Mediador. Ora, se bem que ele ainda não
havia se revestido da carne, contudo desceu como um, por assim dizer, intermediário,
para que se achegasse mais intimamente aos fiéis. Portanto, esta comunicação
mais íntima lhe valeu o nome de Anjo, enquanto retinha o que lhe era
peculiar:
ser ele o Deus da glória inefável.
O mesmo
entende Oséias que, após recontar a luta que Jacó sustentou com o anjo, diz: “O
Senhor é o Deus dos Exércitos; o Senhor, seu nome é um memorial perpétuo
[Os 12.5]. Serveto rosna novamente, dizendo que Deus havia tomado a pessoa
de um anjo. Como se, afinal, o Profeta não estivesse a confirmar o que
fora
dito por
Moisés [Gn 32.29, 30]: “Por que perguntas por meu nome?” E a confissão do santo
Patriarca, quando diz: “Vi a Deus face a face” [Gn 32.29, 30], suficientemente declara
que não se tratava de um anjo criado, mas Aquele em quem residia a plena
Deidade. Daqui também essa afirmação de Paulo [1Co 10.4], de que Cristo fora
o guia do povo no deserto, visto que, embora ainda não fosse vindo o tempo de sua
humilhação, contudo aquela Palavra eterna propôs uma prefiguração de seu ofício,
a que fora destinado. Ora, se porventura for examinado, sem contenda, o primeiro
capítulo de Zacarias, e o segundo, o Anjo que envia outro Anjo [Zc 2.3] é
o mesmo
imediatamente cognominado o Deus dos Exércitos, e lhe é atribuído
poder supremo.
Deixo de
considerar inúmeros testemunhos nos quais, com plena segurança, se nos arrima a
fé, a despeito de que os judeus não se deixam mover de modo algum.
Quando,
pois, se diz em Isaías [25.9]: “Eis, este é o nosso Deus, este é o
Senhor: nele esperaremos e ele nos preservará”, é evidente aos que são
dotados de olhos que a referência é a Deus, que se levanta de novo para a
salvação de seu povo. E essas expressões enfáticas, duplamente
repetidas, não permitem aplicar-se isto a outro
senão a
Cristo.
Ainda mais
clara e taxativa é a passagem de Malaquias [3.1] em que promete que o
Dominador, que era então buscado, haveria de vir a seu templo. Sem dúvida que
somente ao Deus supremo foi sagrado o templo, o que, no entanto, o Profeta reivindica
para Cristo. Do quê se segue que Cristo é o mesmo Deus que foi sempre adorado
entre os judeus.
João
Calvino