Contudo,
antes que eu avance mais longe, é preciso provar a divindade tanto do Filho
quanto do Espírito Santo; em seguida, veremos como eles diferem entre
si.
Evidentemente,
quando na Escritura é posta diante de nós a expressão Palavra de Deus,
seria o cúmulo do absurdo imaginar-se apenas a momentânea e evanescente emissão
de voz que, lançada ao ar, se projeta para fora do próprio Deus, cuja
natureza
foram não
só os oráculos outorgados aos patriarcas, mas ainda todas as profecias, quando
outrora se indicava com este designativo a perpétua Sabedoria residente em
Deus, de que provieram tanto os oráculos quanto todas as profecias. Ora, Pedro
[1Pe 1.11] testifica que os profetas antigos falaram pelo Espírito de Cristo, não
menos que os apóstolos e quantos mais tarde ministraram a doutrina celestial.
Entretanto,
uma vez que Cristo ainda não havia se manifestado, é necessário entender a
Palavra como gerada do Pai antes dos séculos. Porque, se esse Espírito,
de quem os profetas foram instrumentos, foi o Espírito da Palavra,
concluímos, sem sombra de dúvida, que o Deus verdadeiro era a Palavra.
E Moisés
ensina isto bem claramente na narrativa da criação do mundo, apresentando- lhe
essa mesma Palavra como intermediária. Pois, por que fala
expressamente haver Deus dito, ao criar a cada uma de suas obras: Haja
isto ou aquilo, senão para que a glória insondável de Deus reluza naquele
que é sua imagem? Aos escarnecedores e palradores seria fácil contornar
isto, alegando que nessa referência toma-se palavra na acepção de
ordem e preceito. Melhores intérpretes, porém, são os apóstolos que
ensinam [Hb 1.2, 3] que os mundos foram criados através do Filho, e que ele a
tudo sustenta por sua poderosa Palavra. Ora, vemos que aqui o termo
Verbo é tomado na acepção de arbítrio ou determinação do
Filho, que é ele próprio a Palavra eterna e essencial do Pai.
Na verdade
não é obscuro aos sóbrios e comedidos o que Salomão diz [Pv 8.22, 23],
onde introduz a Sabedoria como gerada por Deus antes dos séculos e a
presidir à criação das coisas e a todas as obras de Deus. Ora, seria estulto e
frívolo imaginar aqui uma como que determinação temporária de Deus, quando ele
queria então
manifestar
seu plano fixo e eterno, e mesmo algo mais recôndito. Com que também se afina
aquela declaração de Cristo: “Meu Pai e eu trabalhamos até agora” [Jo 5.17].
Pois, afirmando haver estado constantemente em ação juntamente com o Pai desde
o próprio início do mundo, expressa de modo mais explícito o que Moisés
abordara de
maneira mais sucinta. Concluímos, pois, que Deus assim falou no ato da
criação para que a Palavra tivesse sua parte na ação e com isso a operação
fosse, a um só tempo, comum a ambos.
João,
porém, é de todos o que fala muito mais claramente, quando
declara que aquela Palavra que desde o princípio era Deus com Deus, juntamente
com Deus o Pai, é a causa de todas as coisas [Jo 1.1-3]. Ora, João não
só atribui ao Verbo uma essência real e permanente, mas ainda lhe assinala
algo peculiar e mostra, com
luminosa
clareza, como Deus foi o criador do mundo mediante a Palavra. Logo, uma vez que
todas as revelações divinamente comunicadas são designadas,
com toda
propriedade, com o título de Palavra de Deus, assim convém elevar
ao mais alto grau esse Verbo substancial como a fonte de todos os
oráculos, o qual, acima de toda variação, permanece perpetuamente um e o mesmo
com Deus, e ele próprio é Deus.
João
Calvino