Total de visualizações de página

quarta-feira, 18 de abril de 2018

A VERDADEIRA RELIGIÃO PROCLAMA O DEUS ÚNICO E ABSOLUTO


No entanto, dissemos no início que o conhecimento de Deus não está posto em fria especulação, mas traz consigo o culto. E tocamos de passagem em como se deve cultuar a Deus de forma apropriada, o que se haverá de expor mais profusamente em outros lugares. Agora repito apenas resumidamente: sempre que a Escritura afirma
que há um só e único Deus, não está a pugnar pelo mero nome em si, mas também preceitua isto: que não se deve transferir para outrem tudo quanto só compete à Deidade. Donde também se faz patente em quê a religião pura difere da superstição; para os gregos, certamente equivale à correta adoração, pois que até os próprios cegos, a tatearem nas trevas, sempre sentiram que se faz
necessário uma norma precisa para que Deus não seja cultuado de forma irracional.
Embora Cícero, com acerto e erudição, derive o termo religião de reler, a razão que assinala, isto é, que os adoradores probos releriam mais vezes e ponderariam mais diligentemente o que seria verdadeiro, no entanto é forçada e deixa muito a desejar.
Sou antes de parecer que este vocábulo se opõe à licença errática, visto que a maior parte do mundo se agarra impensadamente a qualquer coisa que surja à frente; mais até, vagueia para cá e para lá. A piedade, porém, para manter-se a passo firme, se relega a seus estritos limites. De igual modo, a mim me parece daí enunciar-se a palavra superstição, a qual, não contente com a maneira e ordem prescritas, acumula amontoado supérfluo de coisas vãs.
Deixando de lado, porém, a consideração de termos, tem sido sempre recebido pelo consenso de todos os tempos que a religião está viciada e pervertida com erros enganosos. Do quê concluímos ser frívolo o pretexto que os supersticiosos evocam, quando nos permitimos algo qualquer em função de zelo inconsiderado. Entretanto, ainda que esta confissão ressoe na boca de todos, contudo se patenteia vil ignorância, visto que, segundo ensinamos previamente, não se apegam somente ao Deus único, nem aplicam discernimento em seu culto.
Deus, porém, vindicando seu próprio direito, se proclama como Deus zeloso e que haverá de ser severo vingador, se for confundido com qualquer deidade fictícia [Ex 20.5]. Então, para que o gênero humano o tenha em obediência, define seu culto legítimo. A um e outro desses aspectos enfeixa em sua lei, quando, primeiramente,
a si convida os fiéis a fim de ser seu único legislador; em seguida prescreve a regra segundo a qual ele deve ser devidamente cultuado, conforme seu arbítrio.
Entretanto, quanto à lei, uma vez que seu uso e função são múltiplos, a discutirei no devido lugar; agora abordo apenas este aspecto: que aí se impôs um freio aos homens, para que não se inclinem para as formas corruptas de adoração. Mas, devese
reter o que postulei em seção prévia: a não ser que resida no Deus único tudo quanto é próprio da Deidade, ele é despojado de sua dignidade e profanado lhe é o culto.
E aqui importa atentar, com cuidado ainda mais diligente, com que sutilezas a superstição se recreia! Ora, tampouco descamba para as deidades estranhas a tal ponto que pareça desertar ao sumo Deus, ou reduzi-lo à escala dos demais; todavia, enquanto lhe confere o lugar supremo, cerca-o de uma turba de deuses menores, entre os quais partilha as funções que lhe são privativas. E assim, embora dissimulada e habilidosamente, sua glória é desmembrada da divinitude, de sorte que não permaneça toda em um só.
Assim outrora os antigos, tanto dentre os judeus quanto dentre os gentios, subordinaram ao pai e árbitro dos deuses aquela turba ingente que exerce em comum com o Deus supremo, conforme o grau hierárquico, o governo do céu e da terra.
Assim, alguns séculos atrás os santos foram elevados ao consórcio de Deus, os quais haviam partido desta vida, de sorte que viessem a ser reverenciados, e invocados, e festejados em seu lugar. Na verdade somos de parecer que, com tal abominação, de fato não se ofusca a majestade de Deus, quando em larga medida ela é suprimida e extinta, senão que retemos dele uma fria noção da autoridade suprema.
Enquanto isso, enganados por tais mistificantes envoltórios, somos conduzidos a deuses diversos.
                                                                           
João Calvino