Também nos
milagres, quão límpida e luminosamente sua Deidade se patenteia! Milagres esses,
embora eu reconheça serem operados iguais e semelhantes tanto pelos profetas
quanto pelos apóstolos, entretanto nisto está a máxima diferença: que estes,
por seu ministério, apenas administraram os dons de Deus; aquele
manifestou neles seu próprio poder. É verdade que, por vezes, ele se
serviu da oração para reportar-se à glória do Pai; na maioria dos casos, porém,
vemos seu próprio poder manifesto diante de nós. E como não seria o real
operador dos milagres aquele que, de sua própria autoridade,
confere a outros sua administração?
Ora, o
evangelista [Mt 10.8; Mc 3.15; 6.7] narra que ele outorgou aos apóstolos poder
de ressuscitar os mortos, de curar os leprosos, de expulsar os demônios etc. E esses
apóstolos desempenharam ministério de tal natureza e em moldes que
evidenciassem
sobejamente
que o poder não lhes era de outra fonte senão de Cristo. “Em o nome de Jesus
Cristo”, diz Pedro, “levanta-te e anda” [At 3.6]. Portanto, não é de admirar
se Cristo tenha evocado seus milagres para impugnar a incredulidade dos judeus,
visto que, operados por seu próprio poder, lhe rendiam o mais
amplo testemunho da divindade [Jo 5.36; 10.37; 14.11].
Além disso,
se à parte de Deus nenhuma salvação existe, nenhuma justiça, nenhuma vida,
porém Cristo contém em si todas essas coisas, por certo que nele Deus
se exibe. Nem me venha alguém objetar dizendo que a vida ou a salvação foi
nele infundida por Deus, visto que não se diz que Cristo haja
recebido a salvação; ao contrário, ele próprio é a salvação. E se
ninguém é bom, senão Deus somente [Mt 19.17], como poderia um mero homem
ser, não digo bom e justo, mas a própria bondade e justiça? Que dizer-se quando,
segundo o evangelista o atesta, desde o primeiro lance da criação nele
estava a vida, e ele, já então a existir como a vida, era
a luz dos
homens [Jo 1.4]?
Conseqüentemente,
arrimados em evidências desse gênero, ousamos depositar nele nossa fé e
esperança, quando, no entanto, saibamos que é sacrílega impiedade se a
confiança de alguém é depositada em criaturas. “Credes em Deus? Crede também
em mim”,
diz ele [Jo 14.1]. E assim Paulo interpreta duas passagens de Isaías:
“Todo
aquele que nele espera não será envergonhado” [Is 28.16; Rm 10.11]; igualmente:
“Será da raiz de Jessé aquele que se levantará para reger os povos; nele
esperarão” [Is 11.10; Rm 15.12]. E por que buscarmos mais testemunhos da
Escritura em relação a esta matéria, quando tantas vezes ocorre esta afirmação:
“Quem crê
em mim tem
a vida eterna” [Jo 6.47]?
Ora, a ele
também compete a invocação característica da oração, que emana da fé, a
qual no entanto é própria da Divina Majestade, se alguma outra coisa tem
ela de própria. Pois diz o Profeta: “Todo aquele que invocar o nome do
Senhor será salvo” [Jl 2.32]. Outro, também: “Fortíssima torre é o nome
Jeová: para ela fugirá o justo e será preservado” [Pv 18.10]. Com efeito, o
nome de Cristo é invocado para a salvação. Segue-se, portanto, que ele próprio
é o Senhor. De fato, temos em Estêvão exemplo desta invocação, quando ele diz:
“Senhor Jesus, recebe meu espírito” [At 7.59]. A seguir o temos em toda
a Igreja, como o atesta Ananias, nesse mesmo livro [9.13]: “Senhor”,
diz ele, “sabes quão grandes males tem este infligido a todos os santos
que invocam teu nome.” E para que se entenda mais amplamente que em Cristo
habita corporalmente toda a plenitude da divindade [Cl 2.9], o Apóstolo confessa
[1Co 2.2] que não havia proposto entre os coríntios nenhuma outra
doutrina senão o conhecimento dele, nem outra coisa havia pregado senão essa
mesma doutrina.
Indago,
pois, que é de tão extraordinário e de quão grande importância, o fato de
somente o nome do Filho nos ser anunciado, a nós a quem Deus ordena [Jr
9.24] que nos gloriemos unicamente no conhecimento dele? Quem ousou dizer que
é mera criatura esse cujo conhecimento nos é a única glória? Acresce a isto
que as
saudações
prefixadas às epístolas de Paulo imprecam do Filho os mesmos benefícios que se
imploram do Pai, pelo que somos ensinados não só que pela intercessão daquele
nos advêm aqueles coisas que o Pai celestial prodigaliza, mas ainda que,
mercê da comunhão de poder, o próprio Filho é seu autor.
Este
conhecimento prático é, indubitavelmente, mais preciso e mais seguro que especulação
ociosa de qualquer sorte. Pois a alma piedosa percebe a Deus mui presente, e como
que quase o toca, ali onde se sente vivificar, iluminar, preservar,
justificar e santificar.
João
Calvino