Finalmente, ainda que fossem admitidas todas estas coisas, contudo uma vez
mais surge novo conflito com ele, quando negamos haver em Roma uma igreja na
qual possam residir benefícios dessa natureza; quando negamos haver aí um bispo
que sustenha esses privilégios de dignidade. Poranto, quanto à questão se todas
essas coisas são verdadeiras, já provamos ser falso que Pedro foi constituído pela
palavra de Cristo cabeça de toda a Igreja; que ele deixou à sé romana a honra e
dignidade que lhe foram concedidas; que isso mesmo foi sancionado pela autoridade da Igreja antiga e confirmado por longo uso; que o supremo poder, de um consenso único, foi sempre deferido por todos ao pontífice romano; que ele é juiz de todas
as controvérsias e de todos os homens, sem que possa ser por nenhum deles julgado,
e tudo quanto lhes parecer. A tudo isso respondo com uma palavra: nada dessas
coisas vale alguma coisa, a menos que em Roma haja uma igreja e um bispo. Necessariamente hão de me conceder isto: não pode ser mãe das igrejas aquilo que não é
igreja; e não pode ser príncipe dos bispos aquele que não é bispo.
Portanto, querem que em Roma esteja a sé apostólica? Dêem-me um verdadeiro
e legítimo apostolado. Querem que aí esteja um sumo pontífice? Dêem-me um bispo. E então? Onde nos mostrarão qualquer aparência de igreja? De fato a chamam
assim, e a têm reiteradamente na boca. Incontestavelmente, a Igreja é reconhecida
por suas marcas seguras, e o episcopado é designativo de ofício. Não estou aqui
falando a respeito do povo, mas do regime em si, que deve luzir perpetuamente na
Igreja. Onde está aí o ministério tal como o requer a instituição de Cristo? Lembremo-nos do que foi dito anteriormente acerca do ofício dos presbíteros e do bispo. Se
conformarmos o ofício dos cardeais a essa regra, então descobriremos que eles nada
menos são que presbíteros. Também, gostaria de saber que tem seu pontífice que o
faça reconhecível como bispo. O primeiro item no ofício do bispo é ensinar a massa
com a Palavra de Deus; o segundo e imediato a este é administrar os sacramentos; o
terceiro é avisar e exortar, bem como corrigir os que pecam e manter o povo na santa
disciplina. Qual dessas funções o papa cumpre? Aliás, qual delas ele sequer finge
fazer? Digam, pois, em virtude do quê querem que seja tido por bispo aquele que nem
com o dedo mínimo toca um mínimo sequer de seu ofício nem demonstra fazê-lo.
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32
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terça-feira, 25 de dezembro de 2018
A CORRUPÇÃO DA SÉ ROMANA NOS DIAS DE CALVINO ERA AINDA MAIOR QUE A DENUNCIADA POR GREGÓRIO, O GRANDE (540?–604) E BERNARDO DE CLAREVAL (1091–1153)
Mas para que não me veja obrigado a perseguir e examinar cada caso particular,
de novo apelo para estes que hoje querem ser tidos não só como melhores, mas
também os mais fiéis patronos da sé romana, se porventura não se envergonham de
defender o presente estado do papado, que é evidente ser cem vezes mais corrupto
do que o foi nos séculos de Gregório e Bernardo, o qual, no entanto, então desagradava tão deploravelmente àqueles santos varões.
Queixa-se Gregório, a cada passo, de ser além da medida distraído por ocupações alheias, de sob o apanágio do episcopado ter sido reconduzido à vida secular,
onde se sujeitasse a tantos cuidados terrenos, aos quais não se lembraria de jamais
haver se dedicado na vida leiga; de ser premido pelo tumulto dos negócios seculares
a tal ponto que de modo algum sua mente se elevava às coisas eternas; de ser sacudido por muitas ondas de causas e afligido pelas tempestades de uma vida tumultuosa, de modo que diz, com razão: “Penetrei na profundeza do mar.” É verdade que
entre essas ocupações terrenas ele podia, no entanto, ensinar a seu povo mediante
sermões, admoestar e corrigir em particular àqueles a quem isto se impunha, manter
em ordem sua igreja, dar conselhos aos colegas e exortá-los ao dever. Além destas
coisas, restava-lhe algum tempo para escrever, e contudo deplora sua calamidade,
de que se submergiu em um mar mui profundo. Se a administração daquele tempo
foi um mar, que se haverá de dizer do papado atual? Ora, que semelhança têm entre
si? Aqui, nenhum sermão, nenhuma preocupação de disciplina, nenhuma dilegência
para com as igrejas, nenhuma função espiritual, afinal nada, senão o mundo. Este
labirinto, no entanto, é louvado exatamente como se nada mais se possa achar ordenado e disposto!
Bernardo, porém, se derrama em queixas, emite lamentações, enquanto contempla os vícios de sua época! Ora, e se ele contemplasse este nosso século de ferro, e
algo ainda pior que o ferro? Que perversidade é esta, não só em defender pertinazmente como sacrossanto e divino o que, à uma voz, todos os santos sempre desaprovaram, mas depois o papado também abusou de seu testemunho em sua defesa, o
qual é patente que lhes era inteiramente desconhecido? Se bem que em relação ao
tempo de Bernardo confesso que então a corrupção de todas as coisas foi tão grande, que não parecia muito diferente do nosso. Carecem de todo pejo, porém, aqueles
que, desse período intermédio, isto é, de Leão e de Gregório, e de outros afins,
buscam algum pretexto, pois fazem exatamente como se, para corroborar a monarquia dos Césares, alguém louvasse o estado antigo do império romano, isto é, tomasse de empréstimo os louvores da liberdade para engalanar a tirania.
João Calvino
João Calvino
O ABSOLUTISMO PAPAL FORMALMENTE CONDENADO POR CIPRIANO E GREGÓRIO, O GRANDE
Não tratarei com eles nos termos mais estritos. Qualquer outro poderia opor-se
à proposição de Cipriano, de que fez uso diante dos bispos, cujo concílio estava
presidindo: “Nenhum de nós se diz bispo dos bispos, ou, com tirânico terror, força
os colegas à necessidade de obedecer-lhe”; objetaria o que pouco depois foi decretado em Cartago: “Que não se chamasse alguém príncipe dos sacerdotes ou primeiro bispo”; coligiria das histórias muitos testemunhos, muitos cânones dos sínodos,
muitas declarações dos livros dos antigos, mercê dos quais o pontífice romano fosse
compelido à devida posição. Eu, porém, me abstenho de mencionar essas coisas
para não parecer acossá-los de maneira estrita demais.
Entretanto, que os excelentíssimos patronos da sé romana me respondam: com
que fronte ousem defender o título de bispo universal, quando o vêem tantas vezes
sendo condenado com anátema por Gregório. Se o testemunho de Gregório tem
alguma valia, ele declara que o Anticristo é que fez de seu pontífice o bispo universal. Também o título cabeça foi muitíssimo comum naquele tempo. Ora, assim fala
em alguma parte: “Pedro foi o membro primordial no corpo; João, André, Tiago
foram cabeças de grupos particulares; todos, contudo, são membros da Igreja sob
um cabeça único. Com efeito, os santos antes da lei, os santos sob a lei, os santos na
graça, todos completando o corpo do Senhor, foram constituídos em membros, e
nenhum deles nunca quis ser universal.”93
Quanto à autoridade de mandar que o pontífice reivindica para si, está mui longe de ser compatível com aquilo que Gregório diz em outro lugar. Ora, como Eulógio, bispo de Alexandria, dissesse que foi por ele mandado, responde-lhe assim:
“Peço-vos que não me permitas ouvir esta palavra mandado, pois sei quem eu sou e
quem sois: em posição, somos irmãos; nos costumes, somos pais. Logo, eu não
mandei; ao contrário, apenas tentei indicar aquelas coisas que me pareceram úteis.”94
Que sua jurisdição se estende sem fim, nisso faz grave e atroz injúria não apenas aos
demais bispos, mas também às igrejas, uma a uma, as quais, desse modo, rasga e
dilacera para que sua sé edifique sobre suas ruínas. Mas para que eximir a todos os
juízos, e de maneira tirânica deseja de tal forma reinar, que tem por lei sua própria
vontade, na verdade isso é mais indigno e alheio à ordem eclesiástica do que se
possa de qualquer modo sustentar, porque isto discrepa inteiramente não só do sentimento de piedade, mas até mesmo do senso de humanidade.
João Calvino
João Calvino
AS PRETENSÕES MAIS DESMEDIDAS DA SÉ ROMANA E SEU PONTÍFICE FRAUDULENTAMENTE CALCADAS EM DOCUMENTOS POSTERIORES FALSOS, FORJADOS, ESPÚRIOS
E para que editos deste gênero tivessem mais de peso, publicaram-nos falsamente com os nomes de pontífices antigos, como se as coisas fossem assim instituídas desde o começo, quando de fato é mais certo que seja novo e fabricado recentemente o que quer que seja que atribui mais ao pontífice romano do que lhe referimos haver sido dado pelos concílios antigos. Senão que, além disso, procederam de
impudência o fato de publicarem um rescrito sob o nome de Anastácio, patriarca de
Constantinopla, no qual atesta haver sido sancionado nos cânones antigos que nada
se fizesse, até mesmo nas mais remotas províncias, que não houvesse de ser antes
referido à sé romana. Além de ser manifesto que isso é absolutamente falso, a qual
dos homens será crível que tal recomendação da sé romana fosse proferida por um
adversário e rival da honra e dignidade? Mas, evidentemente se fez necessário que
estes anticristos se viram impelidos a isso por demência e por cegueira, para que a
todos os homens de mente sã, que simplesmente queiram abrir os olhos, sua impiedade fosse óbvia.
Mas, as Epístolas Decretais acumuladas por Gregório IX, de igual modo, as Clementinas e as Extravagantes de Martinho, ainda mais abertamente e mais expressamente, por toda parte respiram sua desumana fereza e tirania, como que de reis bárbaros. De fato, são estes os oráculos dos quais querem os romanistas que seu papado seja
estimado! Daqui nasceram esses preclaros axiomas que hoje, por toda parte, no papismo obtêm a força dos oráculos: que o papa não pode errar; que o papa é superior aos
concílios; que o papa é o bispo universal de todas as igrejas e a suprema cabeça da
Igreja na terra. Deixo de mencionar despautérios muito mais absurdos, que em suas
escolas cronistas estultos proclamam, aos quais, entretanto, para lisonjear seu ídolo,
não apenas consentem, como também aplaudem os teólogos romanistas.
João Calvino
João Calvino
O ABSOLUTISMO DA AUTORIDADE PAPAL QUE SE IMPLANTOU, EMBALADO NAS PRETENSÕES DILATADAS EXPRESSAS NOS DECRETOS DE GRACIANO
Agora, porém, ainda que concedamos hoje ao pontífice romano aquela eminência e amplitude de jurisdição que, nos tempos medievais, como os de Leão e Gregório, teve esta sé, que é isso em comparação ao papado atual? Não estou ainda falando do domínio terreno, nem do poder civil, do qual trataremos a seu tempo, mas do
próprio regime espiritual que alardeiam, que semelhança tem ele com a condição
daqueles tempos? Ora, não definem o papa de outra sorte senão a suprema cabeça
da Igreja na terra e o bispo universal de todo o universo. Os próprios pontífices,
porém, quando falam de sua autoridade, com grande vanglória proclamam que em
sua mão está o poder de mandar, que aos outros resta a necessidade de obedecer, que
assim lhes devem ser tidas todas as ordenanças como se confirmadas pela divina
voz de Pedro; que os sínodos provinciais, visto que não têm a presença do papa,
carecem de força, que eles podem ordenar clérigos em relação a toda e qualquer
igreja, e à sua sé podem convocar aqueles que foram ordenados em outro lugar.
Coisas inumeráveis desse gênero se encontram na miscelânea de Graciano, as quais
não menciono para que não seja demasiado molesto aos leitores.
A suma disto, contudo, se reduz nisto: só no poder do pontífice romano está o
supremo conhecimento de todas as causas eclesiásticas, seja em se arbitrarem e se
definirem doutrinas; seja em se sancionarem leis, seja em se estabelecer disciplina,
seja em se efetuarem juízos. Além disso, os privilégios que assumem para si nas
reservas, como as chamam, não só seria longo demais recenseá-los, como também
supérfluo. Mas o que é de todos o mais supinamente intolerável é que não deixam
nenhum juízo na terra para coibir e refrear-lhes a cupidez, se abusem de tão desmedido poder. Em razão do primado da igreja romana, dizem eles, a ninguém é lícito
rever juízo desta sé. Igualmente, nem pelo Imperador, nem pelos reis, nem por todo
o clero, nem pelo povo, o Juiz será julgado. Certamente ultrapassa toda medida que
um homem só se constitua juiz de todos, e que não queira submeter-se ao juízo de
ninguém. Mas, que sucederá se ele se conduz despoticamente para com o povo de Deus? Se converter seu ofício de pastor em latrocínio? Se destruir o reino de Cristo?
Se perturbar toda a Igreja? Inclusive, ainda que seja um perverso e maldito, nega
que pode ser obrigado a prestar conta. Ora, estas são as palavras dos pontífices:
“Deus quis que as causas e pleitos dos demais homens sejam decididas pelos homens; mas o prelado desta sé o reservou, sem exceção alguma, para sua própria
jurisdição.” Igualmente: “Os feitos de nossos súditos são julgados por nós; os nossos, porém, somente por Deus.”
João Calvino
João Calvino
O LIBELO DE BERNARDO DE CLAREVAL (1091–1153) QUANTO AO DEPLORÁVEL ESTADO DA IGREJA DE SEU TEMPO, SOB A LUVA DE FERRO PAPAL, SENDO A SÉ ROMANA O FOCO DE TODA CORRUPÇÃO
Como as coisas fossem de mal a pior, a tirania da igreja romana foi se robustecendo e crescendo passo a passo; e isto em parte pela ignorância dos bispos, em
parte por sua negligência. Pois quando um só bispo assumiu a si todas as coisas, e
sem medida avançasse mais e mais a exaltar-se contra o direito e o justo, sem conter
sua ambição, os bispos não se opuseram com o zelo que deviam. E ainda que tivessem ânimo para fazê-lo, careciam da verdadeira ciência e sabedoria, de sorte que
eram incapazes de enfrentar tal empresa.
E assim vemos de que natureza e quão prodigiosa foi a profanação de todas as
coisas sagradas em Roma e o desmantelamento de toda a ordem eclesiástica na
época de Bernardo. Ele se queixa de que de todo o mundo corriam a Roma: os
ambiciosos, os avaros, os simoníacos, os sacrílegos, os concubinados, os incestuosos e todos e quaisquer monstros deste gênero, para que, pela autoridade apostólica,
ou obtivessem, ou retivessem honras eclesiásticas; e que a fraude, o logro, a violência reinavam por toda parte. Ele diz que a ordem que reinava no modo de julgar era
execrável; e não só era vergonha usá-lo na Igreja, mas até mesmo nos tribunais. Ele
clama que a Igreja estava repleta de ambiciosos, que não mais havia quem tremesse
em perpetrar escândalos como ladrões em um covil, quando distribuem os despojos
dos viajores assaltados. “Poucos”, diz ele, “atentam para a boca do legislador; todos atentam para suas mãos. Entretanto, não sem razão, porque todas elas agem em
prol dos negócios papais.” “Que é isto, que de despojos das igrejas são comprados
esses aduladores que te dizem: ‘Muito bem, muito bem?’ A vida dos pobres é semeada nas praças dos ricos, reluz a prata no lodo, de toda parte para aí se corre, a
apanha não o mais pobre, mas o mais forte; ou, o que talvez mais depressa corre à
frente. De ti, contudo, não vem este proceder, ou, antes, esta morte; meu desejo é
que tu o faças cessar! E contudo tu, que eras o pastor, estás cercado de muito e
precioso ornato. Se eu ousasse dizê-lo, diria que estas são pastagens mais de demônios do que de ovelhas. Evidentemente, assim fazia Pedro, assim se recreava Paulo!” “Tua cúria está mais acostumada a receber bens do que a fazê-los; porque aí os
maus não se tornam melhores, mas os bons se tornam piores.”
Nenhum fiel pode ler sem se estremecer de horror os abusos que se cometiam
nas apelações. Por fim, assim ele conclui em referência a essa frenética cupidez da
sé romana em usurpar jurisdição: “Enuncio o murmúrio e a queixa comum das igrejas. Elas bradam que estão sendo mutiladas e desmembradas. Não há nenhuma, ou
bem poucas, que não lamentem ou temam essa praga. Pergunta-se: que praga? Os
abades subtraem aos bispos sua jurisdição; os bispos, aos arcebispos etc. Seria maravilhoso se isto pudesse ser escusado! Ao fazê-lo, assim provais que tendes a plenitude do poder, porém não justiça. Fazeis isto porque o podeis; mas a questão é se
porventura também o devais. Fostes investidos para conservar a cada um sua honra
e grau, não detrair.” Estas poucas, dentre muitas coisas, aprouve-me referir de Bernardo para que
em parte os leitores vejam quão gravemente caíra então a Igreja, também em parte
para que reconheçam em quão grande tristeza e aflição ante a calamidade desta
ordem mantiram todos os pios.
João Calvino
João Calvino
terça-feira, 27 de novembro de 2018
O IMPERADOR FOCAS, FINALMENTE, CONFERE O PRIMADO À SÉ ROMANA, NO TEMPO DO PAPA BONIFÁCIO III, PEPINO, O BREVE, E CARLOS MAGNO, SELANDO-LHE, POR FIM, A COBIÇADA SUPREMACIA
Finalmente Focas, que assassinou a Maurício e usurpou seu lugar (não sei por
que se fez mais amigo dos romanos, talvez porque aí fora coroado sem disputa),
concedeu a Bonifácio III o que Gregório de modo algum reivindicava: que Roma
fosse a cabeça de todas as igrejas. E assim a controvérsia foi dirimida. Todavia, este
benefício do imperador não teria sido tão proveitoso à sé romana, não fora que
depois lhe fossem acrescentadas outras coisas. Pois a Grécia e toda a Ásia foram
pouco depois apartadas de sua comunhão. A Gália de tal modo a reverenciava, que
não lhe obedecia se não lhe fosse conveniente. Quando Pepino ocupou o trono,
então, antes de tudo, ela foi reduzida à servidão. Ora, como Zacarias, o pontífice
romano, ao associar-se a ele em sua perfídia e latrocínio, destronado o legítimo rei,
arrebatasse o reino como se fora algo abandonado à presa, em recompensa de seu
serviço obteve que as igrejas da Franca se submetessem à romana. Da mesma forma
como costumam os salteadores, quando dividem o despojo comum, assim estes bons
varões dispuseram entre si que de fato a Pepino coubesse o domínio terreno e civil;
uma vez espoliado o verdadeiro rei, Zacarias, porém, se fizesse o cabeça de todos os
bispos e tivesse o poder espiritual, poder que, embora fosse fraco de início, como
costuma acontecer em coisas novas, a seguir foi reforçado pela autoridade de Carlos
Magno, por uma causa quase semelhante, pois também ele próprio estava em obrigação
para com o pontífice romano, porque havia chegado à honra do Império por
esforço deste.
Mas ainda que seja possível que as igrejas estivessem já, em todas as partes,
bem debilitadas, por certo que se sabe, não obstante, que então se perdeu definitivamente
na França e Alemanha a antiga forma da Igreja. Ainda hoje existe nos arquivos
do Parlamento de Paris uma breve história daqueles tempos, que ao tratar dos
assuntos eclesiásticos faz menção dos acordos que Pepino e Carlos Magno fizeram
com o pontífice romano. Disto se pode deduzir que então se mudou a antiga forma
da Igreja.
João Calvino
João Calvino
JOÃO, BISPO DE CONSTANTINOPLA, DECLARA-SE PATRIARCA UNIVERSAL, AO QUE SE OPÕE GREGÓRIO, O GRANDE, BISPO DE ROMA, CONTRA TAL PRETENSÃO DE QUEM QUER QUE SEJA
Mas, pouco depois, João, que era bispo de Constantinopla durante a época de
Gregório, avançou tanto, que se intitulou patriarca universal. A este se opôs animosamente
Gregório em defesa da honra de sua sé. E na verdade era intolerável não só
a soberba de João, como também sua insânia, querendo igualar os limites de seu
episcopado aos limites do Império. Contudo, tampouco Gregório reivindica para si
o que nega a outro; ao contrário, esse título, não importa por quem afinal seja usurpado,
o abomina como celerado, ímpio e nefando. E inclusive se aborrece com
Eulógio, bispo de Alexandria, por havê-lo honrado com este título. Diz ele: “Destes-me
um título de soberba, chamando-me papa universal; e isto no princípio da
carta que me enviastes, a mim que pusestes tal título. O que vos peço é que vossa
santidade não vos permita repeti-lo. Porque a vós se tira o que se dá a outro, além do
que a razão o exige. Eu não tenho por honra aquilo com que percebo que se diminui
a honra de meus irmãos. Porque minha honra é que o estado da Igreja universal e o de meus irmãos mantenha seu vigor. E se vossa santidade me chama papa universal,
isto é confessar que vós não sois em parte o que do todo a mim me atribuís.”89
De fato a causa de Gregório era boa e honesta, mas, ajudado pelo favor do
Imperador Maurício, João não pode ser demovido de seu propósito. Ciríaco, seu
sucessor, quanto a esta matéria, também jamais se deixou persuadir.
João Calvino
João Calvino
OPOSIÇÃO TENAZ DE LEÃO, PONTÍFICE ROMANO, A QUE SE DEFERISSE À SÉ DE CONSTANTINOPLA A HONRA DE SEGUNDA EM EMINÊNCIA, TEMENDO QUE ELA VIESSE A SUPLANTAR A PRÓPRIA ROMA, SENDO ENTÃO A PRIMEIRA
De conformidade com esta ordenança antiga, foi decretado no Primeiro Concílio
de Constantinopla que o bispo dessa cidade tivesse privilégios de honra em seguida
ao pontífice romano, visto que ela seria a nova Roma. Mas, longo tempo
depois, como um decreto semelhante fosse promulgado em Calcedônea, Leão protestou
acremente. Não só se permitiu anular o que seiscentos ou mais bispos haviam
decretado, mas também os atacou com graves acusações, porque derrogassem a
outras sés a honra que ousassem conferir à igreja constantinopolitana. Pergunto:
que outra razão teria incitado o homem a conturbar o mundo inteiro por causa de tão reduzida importância, senão por pura ambição? Diz que deve ter-se como inviolável
o que uma vez foi sancionado pelo Concílio de Nicéia. Como se realmente a fé
cristã estivesse em perigo se uma igreja for preferida a outra, ou como se para outro
fim fossem aí distinguidas as patriarquias por mera questão de organização administrativa.
Sabemos, porém, que a organização administrativa, em razão da variação
dos tempos, admite, mais ainda, exige variadas mudanças. Portanto, é fútil o que
Leão sustenta, dizendo que não se deve deferir à sé constantinopolitana a honra que,
pela autoridade do Concílio de Nicéia, se haveria de ter dado à sé de Alexandria.
Ora, o senso comum dita que existiu decreto desta natureza que podia ser revogado,
segundo o reclamo dos tempos.
Por que nenhum dos bispos orientais se opunha, quando isso lhes era totalmente
do interesse? Certamente que Protério estava presente, a quem designaram a Alexandria
em lugar de Dióscoro; estavam presentes outros patriarcas dos quais a honra
estava sendo diminuída. Era o momento desses interferir, não de Leão, que permanecia
em seu lugar sem ser afetado. Mas quando todos eles se calam, mais ainda,
quando consentem, e só o bispo romano resiste, é fácil julgar o que o move: obviamente
previa, o que aconteceu não muito depois, que a glória da Roma antiga decrescia,
e que ocorreria que Constantinopla, não contente com o segundo lugar,
litigasse com ela acerca do primado. Contudo, Leão não conseguiu tanto êxito bradando
que no Concílio o decreto não fosse aprovado. Conseqüentemente, seus sucessores,
como se vissem batidos, desistiram brandamente dessa obstinação: toleraram,
pois, que o bispo de Constantinopla fosse tido como segundo patriarca.
João Calvino
João Calvino
A LUTA PELO PRIMADO TRAVADA ENTRE A SÉ ROMANA E A CONSTANTINOPOLITANA E RAZÃO ADUZIDA: PROJEÇÃO E POLÍTICA DAS CIDADES
Nesse tempo, como já foi dito, o bispo constantinopolitano litigava com o romano
acerca do primado. Ora, depois que a sede do Império foi fixada em Constantinopla, a majestade do Impéro pareceu postular que também aquela igreja tivesse o
segundo lugar de honra, depois da romana. E certamente nada valera mais de início
para enaltecer o primado a Roma do que o fato de então estar aí a capital do Império.
Isso se revela num rescrito de Graciano sob o nome do papa Luciano, onde ele diz
que as cidades não foram distinguidas de outra forma onde devam presidir metropolitanos
e primazes que antes existira do esquema do governo civil. Também outro
rescrito semelhante, sob o nome do papa Clemente, onde ele diz que os patriarcas se
constituíam naquelas cidades nas quais outrora estiveram os sumos sacerdotes dos
gentios.88 Isto, ainda que fosse improcedente, contudo foi tomado do verdadeiro.
Também é manifesto que, para que se fizesse o mínimo de mudança, as províncias
eclesiásticas haviam sido distribuídas segundo o estado de coisas que existia então,
e os primazes e metropolitanos colocados naquelas cidades que precediam as demais
em honras e poder. Assim sendo, foi decretado no Concílio de Turim que as
cidades que fossem as primeiras no governo civil de cada província fossem as primeiras
sés dos bispos; se, porém, houvesse acontecido de transferir-se a dignidade
do governo civil de uma cidade para outra, que juntamente para ali se transferisse o
direito de metrópole. Mas Inocêncio, o pontífice romano, como visse declinar a
antiga dignidade de sua cidade desde que fora transferida a sede do Império para
Constantinopla, temendo por sua sé, promulgou lei contrária, na qual nega ser necessário
que as metrópoles eclesiásticas fossem mudadas, segundo são mudadas as
metrópoles imperiais. Entretanto, a razão dita que se há de antepor a autoridade de
um concílio à de um homem. E, além do mais, Inocêncio deve ser-nos suspeito ao
legislar em causa própria. Seja como for, ele mostra, contudo, por sua providência,
que de início assim fora estabelecido: que as metrópoles eclesiásticas fossem dispostas
segundo a ordem externa do Império.
João Calvino
João Calvino
LIMITAÇÕES JURISDICIONAIS EXPRESSAS DE GREGÓRIO COMO PONTÍFICE ROMANO; MAS, AINDA ASSIM, DEPLORA O ÔNUS ADMINISTRATIVO QUE O SOBRECARREGA
Este, pois, foi então todo o poder do bispo romano: opor-se às cabeças obstinadas
e refratárias, onde se fazia necessário algum remédio extraordinário, e isto para
que ajudasse a outros bispos, não para que lhes criasse estorvo. Assim sendo, não
assume para si nada mais, em relação aos outros do que a todos; em outro lugar,
concede em relação a si mesmo, quando confessa estar preparado para ser por todos
corrigido, para ser por todos emendado. Assim, em outro lugar, de fato ordena ao
bispo de Aquiléia que venha a Roma para pleitear sua causa em uma controvérsia de
fé que surgira entre ele e outros. Entretanto não ordena, de seu próprio poder, mas
porque isso determinara o Imperador. Nem se proclama haver de ser o único juiz; ao
contrário, promete haver de congregar um sínodo pelo qual fosse julgada toda a
questão. Se bem que, no entanto, esta era ainda a moderação: que o poder da sé romana
tivesse seus limites determinados; que não seria lícito exceder, e o próprio bispo
romano não presidia sobre os outros mais do que ele mesmo está sujeito a eles.
No entanto é patente o quanto situação dessa natureza desagradou a Gregório.
De fato ele se queixa reiteradamente que, sob a condição do episcopado, fora reconduzido
ao mundo e está mais envolvido em cuidados terrenos do que jamais esteve
na vida leiga; que nessa honorificência está premido pelo tumulto de negócios seculares.
Em outro lugar: “Tão grandes cargas de ocupações”, diz ele, “me forçam para
baixo, que o ânimo de maneira nenhuma me arrebata às coisas supernas; me vejo
sacudido por muitas ondas de causas; e depois daqueles ócios de quietude sou afligido
pelas tempestades de uma vida tumultuosa; de sorte que, para o expressar corretamente,
vim à profundeza do mar e a tempestade me submergiu.”87 Daqui ele
colige o que haveria de ter dito se houvesse vivido nestes tempos atuais! O ofício de
pastor, se não o preenchia, contudo o desempenhava. Abstinha-se do governo do
império civil e se confessava sujeito ao Imperador, juntamente com os outros. Não
se ingeria no cuidado de outras igrejas, exceto se coagido pela necessidade. E todavia
sente como se estivesse em um labirinto, porque não pode entregar-se total e
simplesmente ao ofício de bispo.
João Calvino
João Calvino
AO TEMPO DE GREGÓRIO, O GRANDE (540?–604), DADA A CAÓTICA SITUAÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DECADENTE, A SÉ ROMANA PASSOU A EXERCER AUTORIDADE PRIMACIAL, CONTUDO COMO MODERADORA, NÃO JURISDICIONAL
No tempo de Gregório, aquele antigo sistema já havia mudado bastate. Pois,
convulsionado e dilacerado o Império, por muitos flagelos reiteradamente sofridos,
sendo as Gálias e as Espanhas afligidas, devastado fosse o llírico, abalada estivesse
a Itália, de fato a África quase destruída por constantes calamidades, para que em
meio de tão grande convulsão das coisas políticas a unidade da fé permanecesse, ou
seguramente não perecesse de vez, todos os bispos, de toda parte, mais se uniram ao
pontífice romano. Com isto aconteceu não só que a dignidade, mas também o poder
da sé romana crescesse impetuosamente. Se bem que não faço tanto empenho em
saber por que razões isto aconteceu. É manifesto que ela então certamente se fez
maior que em séculos precedentes.
E no entanto não chegou a ter tal superioridade que dominasse sobre os outros a
seu bel-prazer.85 Mas a sé romana sustinha esta reverência: que os réprobos e contumazes
que não podiam ser mantidos dentro de seu dever, por seus colegas, os contivesse
e reprimisse por sua autoridade, porque Gregório atesta isto diligentemente e
com freqüência, que não menos queria conservar diligentemente aos outros seus
direitos, que da parte deles requeira ele os seus próprios. “Não quero”, diz ele, “por
ambição privar a ninguém de seus direitos; antes desejo em tudo e absolutamente
honrar a meus irmãos.” Nenhuma palavra há, em seus escritos, pela qual alardeie
mais altivamente a grandeza de seu primado do que esta: “Não conheço a nenhum
bispo que não esteja sujeito à sé apostólica quando é réu de culpa.” No entanto,
acrescenta Imediatamente: “Quando não há culpa, todos, conforme o direito de humildade,
são iguais.”86 Atribui a si o direito de corrigir aqueles que hajam pecado;
se todos cumprem o dever, faz-se igual aos outros. E ele próprio, de fato, atribui isto
a si por direito, mas os que queriam, concordavam; aos outros, porém, a quem isso
não agradava, era lícito reclamar impunemente, o que é sabido haver feito, inclusive
a maioria. Adiciona que ele aí está falando a respeito do primaz bizantino, que,
como fosse condenado por um sínodo provincial, repudiaria todo o julgamento.
Seus colegas denunciaram ao Imperador esta contumácia do homem. Quisera o
Imperador fosse Gregório o árbitro da questão. Vemos, pois, que ele não está tentando
algo com que viole a jurisdição ordinária, e isso mesmo que está fazendo,
para que seja útil a outros, o faz somente por determinação do Imperador.
João Calvino
João Calvino
A IMPROCEDÊNCIA DO PRIMADO JURISDICIONAL DA SÉ ROMANA, OU DE SEU BISPO, EVIDENCIADA NOS ESCRITOS QUE GRACIANO COMPENDIA E NAS EPÍSTOLAS PRESUNÇOSAS DE LEÃO I
Sei muito bem quão numerosas são as epístolas, quão numerosos os escritos e
editos nos quais os pontífices tudo fazem para engrandecer sua autoridade. Mas não
há pessoa de são juízo, nem de tão escasso conhecimento, que não saiba que tais
cartas são tão fúteis, que à primeira vista se dá conta de que escritório procedem.
Pois que pessoa de bom senso poderia crer que Anacleto seja o autor da célebre
interpretação que Graciano adiciona em seu nome, segundo a qual Cefas quer dizer
cabeça? Outras muitas frivolidades semelhantes acumulou Graciano sem discernimento
algum, das quais atualmente os romanistas abusam contra nós para defender
sua sé. E não se envergonham de manifestar como em tempos passados enganavam
o povo com tais escuridades. Porém não quero deter-me muito em refutar coisas tão
frívolas, que por si sós se dissipam.
Reconheço que existem também epístolas verdadeiras de pontífices antigos, nas
quais, com títulos grandiosos, apregoam a grandeza de sua sé, como são algumas de
Leão. Ora, ele foi um homem, tanto erudito e fecundo, quanto ávido de glória e
domínio acima da medida, mas é preciso indagar se porventura as igrejas de então
deram crédito a seu testemunho. Mas é patente que muitos foram ofendidos por sua
ambição, resistindo-lhe inclusive a desmedida cobiça. Em outra parte, duas vezes
sobre a Grécia e outras regiões vizinhas as delega ao bispo de Tessalônica; em outro
lugar, sobre as Gálias, as delega ao bispo de Arles, ou a algum outro. Assim, sobre
as Espanhas constitui a Hormisdas seu vigário, bispo de Sevilha; mas por toda parte
faz exceção: que dá mandados desta ordem com esta condição, que permaneçam
salvos e íntegros os antigos privilégios dos metropolitanos. Com efeito, Leão mesmo
declara ser este um dentre esses privilégios: que se houver dúvida a respeito de
alguma causa, que o metropolitano seja consultado em primeiro lugar. Portanto,
com esta condição eram estes vicariados: que não fosse impedido ou qualquer bispo
em sua jurisdição ordinária, ou o metropolitano em conhecer as apelações, ou o
Concílio Provincial em regular as igrejas. Ora, que era isto senão abster-se de toda
jurisdição, e unicamente intervir para apaziguar as discórdias, quando a lei e a natureza
da comunhão da Igreja permitiam que seus membros não se estorvassem uns aos outros?
João Calvino
João Calvino
A IMPROCEDÊNCIA DA TÃO CELEBRADA JURISDIÇÃO SOBERANA DA SÉ ROMANA COMPROVADA NA QUESTÃO DE DONATO E CECILIANO
Mas, para que ponhamos fim, de uma vez por todas, a esta questão – de que
natureza foi outrora a jurisdição do bispo romano –, bastará uma só história para o
desmascarar. Donato, de Casas Negras, acusara a Ceciliano, bispo cartaginês. O
acusado fora condenado, sem se ouvir a causa, pois, como soubesse da conjuração
feita pelos bispos contra si, não quis comparecer. Daí apresentar-se ao Imperador
Constantino. Esse, como quisesse que a causa fosse encerrada em um julgamento
eclesiástico, entregou o conhecimento do caso a Melcíades, bispo romano, a quem
acrescentou alguns colegas, bispos da Itália, da Gália, da Espanha. Se isto era da
jurisdição ordinária da sé romana, ouvir apelação em causa eclesiástica, por que
permite que outros lhe sejam associados por arbítrio do Imperador? Mais ainda, por
que ele próprio empreende o julgamento mais por mandado do Imperador do que de
seu próprio ofício?
Ouçamos, porem, o que aconteceu depois. Ceciliano é vencedor; Donato das
Casas Negras cai por ação caluniosa; apela; Constantino confia o julgamento da
apelação ao bispo de Arles; assenta-se ele como juiz, para que, após o pontífice
romano, pronuncie o que lhe pareceu bem. Se a sé romana tem sumo poder sem
apelação, por que Melcíades permite tão assinalada ignomínia se lhe seja impingida,
sendo preferido o bispo de Arles? E que Imperador faz isso? De fato Constantino,
a quem gabam de haver conferido não apenas todo seu esforço, mas também
quase todos os recursos do Império, na ampliação da dignidade de sua sé. Vemos já,
pois, quão distante, de todos os modos, esteve então o pontífice romano daquele
supremo domínio que assevera fora dado por Cristo sobre todas as igrejas, e que alega falsamente haver, em todos os séculos, obtido pelo comum assentimento de
toda a terra.
João Calvino
João Calvino
TAMPOUCO O BISPO DE ROMA TEVE JURISDIÇÃO SOBRE OS DEMAIS NO QUE RESPEITA ÀS APELAÇÕES, VISTO QUE OS DOCUMENTOS EVOCADOS ERAM FALSOS OU IMPROCEDENTES
Resta a quarta espécie de poder eclesiástico que reside nas apelações. É evidente
que a autoridade suprema está na mão daquele a cujo tribunal se faz apelo. Muitos,
e com muita freqüência, apelaram para o pontífice romano; ele próprio também
tentou atrair a si o conhecimento das causas, mas foi constantemente escarnecido
sempre que excedeu seus limites. Nada direi acerca do oriente e da Grécia, mas é
notório que os bispos da Gália resistiram tenazmente, quando ele parecia assumir
para si autoridade sobre eles. Na África se debateu por longo tempo a respeito desta
questão, pois, como fossem excomungados no Concílio Milevitano, quando Agostinho
estivera presente, aqueles que apelassem para além-mar, o pontífice romano
tentou fazer com que esse decreto fosse corrigido. Enviou delegados que demonstrassem
que este privilégio fora dado pelo Concílio Niceno. Os delegados exibiam
atas do Concílio Niceno que haviam tomado do arquivo de sua igreja. Os bispos
africanos resistiram e negaram que se devesse dar fé ao bispo romano que legisla
em causa própria; conseqüentemente, declararam haver de enviar a Constantinopla
e a outras cidades da Grécia onde se tivessem exemplares menos suspeitos. Verificouse
que nada desse gênero estava aí escrito como os romanos pretendiam. Assim, foi
ratificado aquele decreto que anulara ao pontífice romano sumo conhecimento das
apelações. Nesta questão pôs-se à mostra a escandalosa impudência do próprio pontífice
romano, pois quando, com fraude, houvesse substituído o Sínodo Sardicense em
lugar do Niceno, foi apanhado vergonhosamente em manifesta falsidade.
Maior ainda, porém mais impudente, foi a desonestidade daqueles que adicionaram
ao Concílio uma epístola fictícia, mediante a qual não sei que bispo cartaginês,
condenando a arrogância de Aurélio, seu predecessor, por haver ousado subtrair-se
à obediência da sé apostólica, fazendo submissão de si próprio e de sua igreja,
humildemente implora perdão.
São estes os egrégios documentos de antigüidade nos quais se fundamentou a
majestade da sé romana, enquanto, sob o pretexto de antigüidade, se lançam contra a verdade de forma tão pueril, que até mesmo os cegos podem apalpar. “Aurélio”,
diz a epístola forjada, “arrebatado de diabólica audácia e contumácia, foi rebelde
em relação a Cristo e a São Pedro, conseqüentemente merecedor de ser condenado
por anátema.” Que diz Agostinho? Que dizem, na verdade, tantos pais que estiveram
presentes ao Concílio Milevitano? Que necessidade há, porém, de refutar com
muitas palavras esse escrito tão insípido, o qual, de fato, os próprios romanistas, se
algo de pejo ainda lhes resta, não podem contemplar sem profunda vergonha? Assim
Graciano, se por ardileza ou por desconhecimento, não sei, quando mencionou
esse decreto, disse: “Que sejam privados da comunhão os que apelaram para alémmar”;
adiciona a exceção: “A não ser, porventura, que hajam apelado à sé romana.”
O que fazer com essas bestas que a tal ponto carecem de senso comum, que excetuam
precisamente o que deu origem à lei, como todos sabem? Porque o Concílio, ao
proibir que se apele para além-mar, não quer dizer outra coisa senão que ninguém
apele para Roma! Este bom intérprete excetua da lei comum precisamente Roma!
João Calvino
João Calvino
TAMPOUCO O BISPO ROMANO USUFRUÍA, ENTÃO, DE JURISDIÇÃO SOBRE OS DEMAIS NO QUE CONCERNE À INDICAÇÃO DE CONCÍLIO
Quanto à convocação de concílios, este era o dever de cada metropolitano: que
reunisse um sínodo provincial nos tempos aprazados. Aí o bispo romano não teve
nenhum direito. Um concílio universal, porém, somente o Imperador podia determiná-lo.
Pois se algum dos bispos tentasse tal coisa, não só não teriam obedecido à
convocação os que eram de fora da província, mas também imediatamente teria
surgido um tumulto. Portanto, o Imperador intimava a todos, em pé de igualdade, a
que estivessem presentes. Refere Sócrates, com efeito, que Júlio, bispo de Roma,
havia reclamado com os bispos orientais por não o haver convocado para o Concílio
de Antioquia, quando fora proibido pelos cânones ser algo decretado sem o conhecimento do pontífice romano. Quem, no entanto, não vê que se deva entender
isto daqueles decretos que obrigam a Igreja Universal? De fato, não surpreende se
isto se dá tanto em relação à antigüidade e grandeza da cidade quanto à dignidade da
sé: que não se faça decreto universal acerca da religião, estando ausente o bispo
romano, desde que ele não se recuse a estar presente. Na verdade, que vale isto para
o domínio de toda a Igreja? Ora, não negamos que o bispo romano fosse um dentre
os principais, porém nos recusamos a admitir o que agora impõem os romanistas, a
saber, que ele exercesse hegemonia sobre todos.
João Calvino
João Calvino
NÃO SE PATENTEIA JURISDIÇÃO SUPERIOR DA SÉ ROMANA EM RELAÇÃO ÀS ADMOESTAÇÕES OU CENSURAS QUE OS BISPOS DIRIGIAM ENTÃO UNS AOS OUTROS
Seguem-se as admoestações ou censuras das quais, como outrora os bispos
romanos fizeram uso em relação aos outros, assim, por sua vez, as sofreram. Irineu,
bispo Lyon, censurou severamente a Vitor, bispo de Roma, por perturbar temerariamente
a Igreja com pernicioso dissídio em razão de coisa de pouca importância. Ele
obedeceu; não reclamou. Essa liberdade foi então comum aos santos bispos, que
usassem de fraterno direito, admoestando ao prelado romano, e castigando-o se a
qualquer tempo pecasse. Ele, por sua vez, quando a situação o exigia, admoestava
aos outros de seu dever; e se algo havia de errado, os repreendia. Ora, Cipriano,
quando exorta a Estêvão, bispo de Roma, a que advirtisse os bispos da Gália, não
argumenta em prol de poder mais amplo, mas do direito comum que os sacerdotes
têm entre si. Pergunto se Estêvão, então, tivesse presidido à Gália, porventura Cipriano
não haveria de lhe haver dito: “Obrigas a esses, porque são teus?” Ao contrário,
ele fala de modo muito adverso. “Esta união fraterna”, diz ele, “porque fomos ligados
entre nós, requer que nos admoestemos mutuamente.” E vemos também com
quão grande severidade de palavras um homem, de outra sorte, de disposição afável,
se lance contra o próprio Estêvão, quando crê que ele se torna demasiadamente
arrogante.
Portanto, também nesta parte, ainda não se faz evidente que o bispo romano
fosse dotado de qualquer jurisdição para com aqueles que não fossem de sua província.
João Calvino
João Calvino
NESSA ÉPOCA A JURISDIÇÃO DO BISPO DE ROMA, NO QUE TANGE À ORDENAÇÃO EPISCOPAL, NÃO ULTRAPASSAVA AS FRONTEIRAS DE SUA PROVÍNCIA
Entretanto, seja como for, examinemos que autoridade e jurisdição teve então a
sé romana. O poder eclesiástico, porém, se contém nestes quatro itens: ordenação
de bispos, indicação de concílios, audição de apelos ou jurisdição, advertências
disciplinares ou censuras. Todos os concílios antigos determinam que os bispos
fossem ordenados por seus metropolitanos; em parte alguma determinam que o bispo
romano seja deslocado para isso, a não ser em sua patriarquia. Gradualmente,
entretanto, veio a prevalecer o costume de que os bispos italianos viessem todos a
Roma em busca de consagração, excetuados os metropolitanos, que não permitiram
ser reduzidos a esta servidão. Quando, porém, tinha que ordenar algum metropolitano,
o bispo romano aí enviava um de seus presbíteros, que apenas estivesse presente,
mas que não presidisse. Exemplo deste fato subsiste em Gregório, na consagração
de Constâncio de Milão, após o falecimento de Lourenço; embora eu não creia
que essa fosse uma instituição muito antiga. Como, porém, por questão de honra e
benevolência, a fim de atestar comunhão, inicial e reciprocamente enviassem legados
que fossem testemunhas de ordenação, o que era voluntário começou, depois, a
ser tido por necessário. Seja como for, salta à vista que o bispo de Roma não tinha
outrora o poder de ordenar, a não ser na província de sua patriarquia, isto é, nas
igrejas suburbanas, como fala o cânon do Concílio Niceno.
À ordenação estava ligado o envio de uma carta sinódica, na qual o bispo de
Roma em nada era superior aos demais. Os patriarcas costumavam, imediatamente
após sua consagração, consignar sua fé em um escrito solene, no qual professavam
subscrever aos santos e ortodoxos concílios. Assim, feita uma exposição de sua fé,
uns aos outros mutuamente se aprovavam. Se o bispo romano houvesse recebido
esta confissão da parte dos outros e não a houvesse dado, nisto teria sido reconhecido
superior; quando, porém, não menos fosse incumbido a dar mais que exigir dos
outros, e ter sido sujeito à lei comum, certamente esse foi sinal de associação, não de domínio. Exemplo desse fato se acha na epístola de Gregório a Anastácio e a
Ciríaco de Constantinopla, e em outro lugar a todos os patriarcas, a um só tempo.
João Calvino
João Calvino
COMO VEIO A SÉ ROMANA A GRANJEAR PODER SOBRE AS DEMAIS IGREJAS
Volvo-me agora à jurisdição que o pontífice romano assevera ter, insofismavelmente,
sobre todas as igrejas. Sei muito bem quão grandes foram outrora os embates
acerca desta jurisdição, pois não houve nenhum tempo em que a sé romana não
cobiçasse a soberania sobre as demais igrejas. E não será intempestivo investigar
neste lugar de que modos ela então, pouco a pouco, emergiu a algum poder. Ainda
não estou falando deste infinito domínio que não há muito tempo arrebatou para si,
pois prorrogamos isso para seu devido lugar. Aqui, porém, é preciso indicar sucintamente
como desde muito e de quais razões se extrapolou, para que assumisse para si
certo direito sobre as demais igrejas.
Como as igrejas orientais estivessem divididas e conturbadas pelas facções dos
arianos, sob os imperadores Constâncio e Constante, filhos de Constantino, o Grande,
e Atanásio fosse expulso de sua sé, ali o principal defensor da fé ortodoxa,
calamidade desta ordem obrigou-o a vir para Roma, para que, pela autoridade da sé
romana, de qualquer modo não só reprimisse a fúria de seus inimigos, mas também
firmasse os piedosos a padecerem duras contingências. Foi ele honorificamente recebido
por Júlio, então o bispo de Roma, e conseguiu que os bispos ocidentais lhe
empreendessem a defesa da causa. Portanto, como os pios carecessem grandemente
de apoio externo, mas na igreja romana visualizassem ótima ajuda, de bom grado
lhe deferiram o máximo de autoridade que podiam. Entretanto, tudo isso outra coisa
não era senão que a comunhão lhe fosse de grande importância, ignominioso, porém,
fosse considerado ser por ela excomungado.
Mais tarde, eles mesmos adicionaram em grande medida elementos maus e réprobos
a essa hegemonia; pois, para que se evadissem a legítimos juízos, se acolhiam
a este asilo. Assim sendo, se algum presbítero fosse condenado por seu bispo, se
algum bispo o fora pelo sínodo de sua província, apelavam, imediatamente, para
Roma. E os bispos romanos recebiam esses apelos mais avidamente do que era
próprio, porquanto parecia ser expressão de extraordinário poder serem eles interpostos
assim, ampla e latamente, nos afazeres. Assim, como Êutiques fosse condenado por Flaviano, patriarca de Constantinopla, ele se queixou junto a Leão,
bispo de Roma, de que lhe havia sido feita injustiça. Esse, nada lento, não menos
temerária que prontamente, empreendeu o patrocínio de uma causa má, investiu
pesadamente contra Flaviano, como se, sem conhecimento de causa, houvesse condenado
a um homem inocente; e com esta sua ambição fez com que, por um espaço
de tempo, se firmasse a impiedade eutiquiana. Isto é patente haver ocorrido freqüentemente
na África, uma vez que, tão logo algum biltre fora sujeito a juízo ordinário, o
mesmo voava para Roma, impingia os seus de muitas calúnias, mas a sé romana estava
sempre preparada para interpor-se. Essa impudência compeliu os bispos africanos
a decretarem que ninguém, sob pena de excomunhão, apelasse para além-mar.
João Calvino
João Calvino
GREGÓRIO, O GRANDE, CONTRAPONDO-SE A JOÃO, ARCEBISPO DE CONSTANTENOPLA, REPUDIA A IDÉIA DE UM BISPO UNIVERSAL COMO PROFANA, SACRÍLEGA, PRÓPRIA DOS TEMPOS DO ANTICRISTO
Quanto ao título de bispo universal, afinal a contenda surgiu no tempo de Gregório,
a qual deu ocasião à ambição de João de Constantinopla. Ora, ele queria
fazer-se bispo universal, o que nenhum outro jamais havia tentado. Nessa disputa
Gregório não alega que se estava a detrair-lhe um direito que lhe competisse; ao
contrário, protesta veementemente que essa designação era profana, mais ainda,
sacrílega, até mesmo prenúncio do Anticristo. “De seu estado esboroa-se a Igreja
inteira”, diz ele, “se cai aquele que se diz universal.” Em outro lugar: “Muito triste
é suportar pacientemente que, desprezados todos, um nosso irmão e colega de episcopado
se denomine o único bispo. Mas, neste orgulho seu, que outra coisa se assinala,
senão que já estão próximos os tempos do Anticristo? Porquanto ele está obviamente
a imitar aquele que, desprezada a sociedade dos anjos, tentou ascender à
culminância da singularidade.” Em outro lugar, a Eulógio, bispo de Alexandria, e a
Anastácio, bispo de Antioquia: “Nenhum de meus predecessores jamais quis usar
este vocábulo profano, porquanto, evidentemente, se um é chamado patriarca universal,
derroga-se aos demais o nome de patriarcas. Longe, porém, esteja isto da
mente cristã: querer alguém arrogar isso para si, do quê diminua a honra de seus
irmãos; por mínimo que ele seja.” Mais: “Consentir nesta expressão celerada outra
coisa não é senão destruir a fé.” “Uma coisa é o que devemos fazer para conservar se
a unidade da fé; outra, o que devemos fazer para reprimir-se a altivez dos soberbos.
Eu, contudo, digo resolutamente que quem quer que se chame, ou deseje chamar-se
sacerdote universal, em sua soberba, faz-se precursor do Anticristo, porque,
ao dar rédeas à sua soberba, se põe adiante dos demais.” Da mesma forma, de novo,
a Anastácio de Antioquia: “Eu disse que ele não pode ter paz conosco, a não ser que
corrija a altivez de um vocávulo supersticioso e soberbo, que o primeiro apóstata
inventou; e – ainda que eu me cale quanto à injúria contra a honra –, se um bispo é
chamado universal, desmorona-se a Igreja universa, quando cai aquele bispo universo.”
O que, porém, escreve quanto a haver esta honra sido oferecida a Leão no Concílio
de Calcedônea, não contém qualquer aparência de verdadeiro, pois não se lê
nada parecido nas atas daquele Concílio. E o próprio Leão, que em muitas epístolas
impugna o decreto ali passado em honra da sé constantinopolitana, sem qualquer
sombra de dúvida não teria deixado passar este argumento, que era de todos muitíssimo
plausível, se fosse verdade que ele repudiou o que lhe era dado; e, homem de
outra sorte mais do que bastante ávido de honra, não teria deliberadamente omitido
o que lhe redundaria em louvor. Gregório, pois, está enganado nisto, porque pensou
ser esse título conferido à sé romana pelo Concílio de Calcedônea (preferindo calar me quanto a ser ridículo o que testifica oriundo de um concílio santo e, ao mesmo
tempo, o pronuncia celerado, profano, nefando, soberbo e sacrílego, na verdade
engendrado pelo Diabo e publicado pelo arauto do Anticristo). E, todavia, ele adiciona
que seu predecessor o havia recusado, para que, enquanto algo se desse a um,
particularmente, privados da devida honra não fossem todos os demais sacerdotes.
Em outro lugar: “Nenhum bispo jamais quis ser chamado por expressão tal; nenhum
para si arrebatou este nome temerário, para que, se em grau de pontificado arrebatasse
para si a glória da singularidade, não parecesse haver negado esta a todos os
irmãos.”
João Calvino
João Calvino
segunda-feira, 26 de novembro de 2018
O BISPO DE ROMA NÃO USUFRUIU NOS PRIMEIROS DIAS DOS TÍTULOS POMPOSOS DOS QUAIS SÓ BEM MAIS TARDE VEIO A EXIBIR
Quanto ao próprio título de primado, e outros títulos de soberba, dos quais agora
se gabam extraordinariamente o bispo de Roma, não é difícil ajuizar de quando e
como foram solertemente introduzidos. Cipriano faz freqüente menção de Cornélio,
nem o distingue com outro título além de irmão, ou de bispo, ou de colega. Com
efeito, quando escreve a Estêvão, sucessor de Cornélio, não só o faz igual a si e aos
demais bispos, mas até mais duramente o invectiva, lançado-lhe em rosto, ora a
arrogância, ora a ignorância. Bem se sabe o que a igreja africana determinou, depois
da morte Cipriano, visto que no Concílio de Cartago se proibiu que se chamasse
alguém de príncipe dos sacerdotes ou de bispo supremo, mas somente bispo da
primeira sé. Porque, se alguém busca nos documentos mais antigos, descobrirá que
então o bispo romano se contentava com a designação comum de irmão. É inegável
que, enquanto a Igreja permaneceu em seu verdadeiro e puro estado, esses títulos
soberbos que mais tarde usurpou a igreja romana para engrandecer-se jamais foram
ouvidos nem conhecidos; desconhecia-se que ele fosse sumo pontífice e única cabeça
da Igreja na terra.
Ora, se o bispo de Roma ousasse assumir para si algo dessa natureza, varões
assisados logo lhe reprimiriam a estultícia. Jerônimo, como fosse presbítero romano,
não foi remisso em proclamar a dignidade de sua igreja, quanto a verdade e a
condição do tempo o permitiam. Vemos, no entanto, como também a reconduziu à
sua posição. “Caso se busque autoridade”, diz ele, “o mundo é maior do que uma
cidade. Por que me apresentas o costume de uma cidade? Por que, contra as leis da
Igreja, reivindicas um costume do qual nasceu a arrogância? Onde quer que um
bispo haja de estar, seja em Roma, seja em Gúbbio, seja em Constantinopla, seja em
Régio, é do mesmo mérito e do mesmo sacerdócio. O poder da riqueza e a humildade
da pobreza não fazem a um bispo superior ou inferior.”
João Calvino
João Calvino
A SÉ ROMANA PRESIDE O CONCÍLIO DE CALCEDONIA, EM 451, ENTRETANTO SÓ A FINS MODERATÓRIOS; NÃO PRESIDE O CONCÍLIO SUBSEQÜENTE, O QUINTO DE CONSTANTINOPLA, EM 553, COMO NÃO PRESIDIRIA AO DE CARTAGO, DE 418, E AO DE AQUILÉIA, EM 381
Seguiu-se o Concílio de Calcedônia, no qual, mercê de concessão do Imperador,
ocuparam o primeiro assento os delegados da igreja romana. No entanto, isso constituiu
um privilégio extraordinário, o confessa o próprio Leão, pois quando pede
isso do Imperador Marciano e da Imperatriz Pulquéria, mostra que isso não lhe era
devido, mas apenas alega que os bispos orientais que presidiram ao Concílio de
Éfeso conturbaram-no todo e abusaram impiamente de seu poder. Assim sendo,
como se fizesse necessário um moderador grave, nem fosse verossímel que para
esse encargo houvessem de ser idôneos aqueles que uma vez foram tão imponderados
e tumultuários, roga que, em razão do vício e inaptidão dos outros, se transferissem
a si as funções de dirigi-lo. O que se solicita por singular privilégio e fora do
proceder normativo, certamente que não procede da lei ordinária. Onde apenas se
alega que seria necessário outro presidente, novo, porque os precedentes se desempenharam
mal, é patente que isso não foi feito anteriormente, tampouco deve ser
perpétuo; pelo contrário, só foi feito em vista do perigo reinante. Portanto, no Concílio
de Calcedônea, o pontífice romano tem o primeiro lugar, não por direito de sua
igreja, mas porque o sínodo estava desprovido de um moderador grave e apto, pois
os que podiam presidir usavam de imoderação e descomedimento.
O sucessor de Leão comprovou pelo próprio fato o que estou dizendo. Porque,
como ao quinto Concílio de Constantinopla, que foi celebrado muito tempo depois,
enviasse seus delegados, não disputou o primeiro assento; pelo contrário, admitiu
facilmente que Menas, o patriarca de Constantinopla, o presidisse. Assim, no Concílio
de Cartago, ao qual esteve presente Agostinho, vemos a presidi-lo não os delegados da sé romana, mas Aurélio, arcebispo do lugar, embora houvesse ainda disputa
acerca da autoridade do pontífice romano. Além disso, também foi celebrado na
própria Itália um Concílio Geral, o de Aquiléia, ao qual o bispo de Roma não esteve
presente. Ambrósio o presidia, o qual então desfrutava de insigne autoridade junto
ao Imperador: nenhuma menção aí se faz do pontífice romano. Portanto, aconteceu
então, pela dignidade de Ambrósio, que a sé de Milão fosse mais ilustre que a romana.
João Calvino
João Calvino
quinta-feira, 8 de novembro de 2018
DO SURTO E INCREMENTOS DO PAPADO ROMANO, ATÉ QUE A ESTA ALTURA SE TRANSPORTOU, PELA QUAL NÃO SÓ A LIBERDADE DA IGREJA FOI OPRIMIDA, MAS TAMBÉM SUBVERTIDA TODA MODERAÇÃO
O PRIMADO DA SÉ ROMANA NÃO FOI POSITIVADO ATÉ O CONCÍLIO DE NICÉIA,
EM 325, E O SÍNODO DE ÉFESO, EM 449, NOS QUAIS OS DELEGADOS
DE ROMA NÃO DESFRUTARAM DE PREEMINÊNCIA SOBRE OS DEMAIS
Quanto à antigüidade do primado da sé romana, nada a corrobora de forma mais fortemente que aquele decreto do Concílio Niceno, pelo qual não só se atribui ao bispo romano o primeiro lugar entre os patriarcas, mas também se lhe impõe exercer o cuidado das igrejas suburbanas. Quando o Concílio divide as igrejas entre eles e os outros patriarcas, de sorte que a cada um se designam seus limites, certamente que ele não o está constituindo cabeça de todos, mas apenas o faz um entre os principais. Estavam presentes Vito e Vicêncio em nome de Júlio, que então governava a igreja romana. Foi-lhes dado o quarto lugar. Pergunto, se Júlio fosse reconhecido como o cabeça da Igreja, porventura seus delegados seriam relegados ao quarto assento? Porventura Atanásio presidiria em um concílio onde, acima de tudo, deve transluzir a efígie da ordem hierárquica? No Concílio de Éfeso, Celestino, que era então o pontífice romano, parece haver-se utilizado de um artifício sutil para que acautelasse a dignidade de sua sé. Ora, como aí enviasse aos seus, confiou a Cirilo de Alexandria que, de qualquer modo, haveria de presidir, fizesse suas vezes. A que propósito esta delegação, senão para que, de qualquer forma, seu nome apegasse à primeira sé? Pois seus delegados se assentam em lugar inferior, são solicitados a dar seu parecer entre os outros, votam por sua vez, enquanto, ao mesmo tempo, seu nome é acoplado ao do patriarca alexandrino. Que direi do segundo Concílio de Éfeso, onde, embora estivessem presentes os delegados de Leão, entretanto, como por direito seu, presidia Dióscoro, patriarca alexandrino? Objetarão dizendo que não foi um concílio ortodoxo, pelo qual não só foi condenado o santo varão Flaviano, mas também absolvido Êutiques e aprovada a impiedade deste. Com efeito, embora o Sínodo se congregasse, quando os bispos distribuíam entre si os assentos, certamente aí entre os outros se assentavam os delegados da igreja de Roma, não de outra forma senão com se dá em um concílio santo e legítimo. Entretanto não contendem quanto ao primeiro lugar; pelo contrário, cedem-no a outro; de maneira nenhuma fariam isso se cressem que ele lhe seria seu por direito. Ora, os bispos romanos nunca se envergonharam de suscitar até mesmo contenções extremadas na promoção de suas honras, e por uma única razão: afligir e conturbar freqüentemente a Igreja com muitos e perniciosos conflitos. No entanto, como Leão via muito bem que seu atrevimento seria tido como excessivo se pretendesse que seus legados ocupassem o primeiro lugar, se deu por satisfeito com o que tinha.
João Calvino
Quanto à antigüidade do primado da sé romana, nada a corrobora de forma mais fortemente que aquele decreto do Concílio Niceno, pelo qual não só se atribui ao bispo romano o primeiro lugar entre os patriarcas, mas também se lhe impõe exercer o cuidado das igrejas suburbanas. Quando o Concílio divide as igrejas entre eles e os outros patriarcas, de sorte que a cada um se designam seus limites, certamente que ele não o está constituindo cabeça de todos, mas apenas o faz um entre os principais. Estavam presentes Vito e Vicêncio em nome de Júlio, que então governava a igreja romana. Foi-lhes dado o quarto lugar. Pergunto, se Júlio fosse reconhecido como o cabeça da Igreja, porventura seus delegados seriam relegados ao quarto assento? Porventura Atanásio presidiria em um concílio onde, acima de tudo, deve transluzir a efígie da ordem hierárquica? No Concílio de Éfeso, Celestino, que era então o pontífice romano, parece haver-se utilizado de um artifício sutil para que acautelasse a dignidade de sua sé. Ora, como aí enviasse aos seus, confiou a Cirilo de Alexandria que, de qualquer modo, haveria de presidir, fizesse suas vezes. A que propósito esta delegação, senão para que, de qualquer forma, seu nome apegasse à primeira sé? Pois seus delegados se assentam em lugar inferior, são solicitados a dar seu parecer entre os outros, votam por sua vez, enquanto, ao mesmo tempo, seu nome é acoplado ao do patriarca alexandrino. Que direi do segundo Concílio de Éfeso, onde, embora estivessem presentes os delegados de Leão, entretanto, como por direito seu, presidia Dióscoro, patriarca alexandrino? Objetarão dizendo que não foi um concílio ortodoxo, pelo qual não só foi condenado o santo varão Flaviano, mas também absolvido Êutiques e aprovada a impiedade deste. Com efeito, embora o Sínodo se congregasse, quando os bispos distribuíam entre si os assentos, certamente aí entre os outros se assentavam os delegados da igreja de Roma, não de outra forma senão com se dá em um concílio santo e legítimo. Entretanto não contendem quanto ao primeiro lugar; pelo contrário, cedem-no a outro; de maneira nenhuma fariam isso se cressem que ele lhe seria seu por direito. Ora, os bispos romanos nunca se envergonharam de suscitar até mesmo contenções extremadas na promoção de suas honras, e por uma única razão: afligir e conturbar freqüentemente a Igreja com muitos e perniciosos conflitos. No entanto, como Leão via muito bem que seu atrevimento seria tido como excessivo se pretendesse que seus legados ocupassem o primeiro lugar, se deu por satisfeito com o que tinha.
João Calvino
A IGREJA PRIMEITIVA, COMO JERÔNIMO E CIPRIANO O ATESTAM, NÃO ESPOSOU A NOÇÃO DE UM BISPO UNIVERSAL, PORTANTO NÃO RECONHECEU O SUPOSTO PRIMADO DO BISPO DE ROMA
Com efeito, mui erroneamente, como já o disse, agem nossos adversários quando
daí querem atribuir-lhe primado e supremo poder sobre as demais igrejas. Para
que isso se evidencie com mais clareza, mostrarei sucintamente que, primeiro, sentiram
os antigos a respeito desta unidade sobre a qual insistem com tão grande
veemência. Jerônimo, em sua Epístola a Nepociano, depois de enumerar muitos
exemplos de unidade, por fim desceu à hierarquia eclesiástica. “Os bispos das igrejas”,
diz ele, “um a um; os arciprestes, um a um; os arcediagos, um a um; e toda a
ordem eclesiástica se firma em seus dirigentes.” Aqui está falando um presbítero
romano. Ele recomenda a unidade na ordem eclesiástica. Ora, por que ele não traz à
lembrança que todas as igrejas foram ligadas entre si por uma cabeça única, como
se por um vínculo? Nada havia que mais servisse à presente causa, nem se pode
dizer ter acontecido por esquecimento que deixasse de referi-lo, porque não teria
feito nada com maior prazer, se os fatos o abonassem.
Assim sendo, ele viu, sem qualquer sombra de dúvida, que o verdadeiro fator da
unidade é aquele que Cipriano descreve magnificamente com estas palavras: “O
episcopado é um todo, do qual uma parte é integralmente mantida pelos bispos, um
a um, e uma só é a Igreja, a qual, pelo incremento de sua fecundidade, se estende
mais amplamente na multidão. Como muitos são os raios do sol, e uma única a luz;
e de uma árvore muitos são os galhos, mas um só o tronco, firmado em raiz tenaz, e
como a emanar de uma só fonte muitos cursos de água; e embora, mercê da prodigalidade
da abundância transbordante, o vultoso número pareça difuso, entretanto a
unidade é conservada inteira na origem, assim também na Igreja, inundada da luz do
Senhor, derrama seus raios por todo o urbe, todavia uma só é sua luz, que é difundida
por toda parte, sem parcelar a unidade do corpo; estende seus galhos pelo orbe
inteiro, produzindo riachos que correm à larga, contudo uma é a cabeça e uma a
origem” etc. Em seguida: “A esposa de Cristo não pode cometer adultério; ela conhece
uma casa, de casto pudor guarda a santidade de um só aposento conjugal.” Vês como ele toma só o episcopado de Cristo como universal, o qual toma sob si
toda a Igreja; diz que partes dela são sustentadas integralmente por todos quantos
exercem o episcopado sob esta Cabeça. Onde está o primado da sé romana, se só na mão de Cristo reside integralmente o episcopado, e de cada bispo lhe é sustentada
integralmente uma parte? Meu objetivo, nestas observações, é mostrar ao leitor, de
passagem, que o axioma da unidade de um gênero terreno na hierarquia, o que os
romanistas assumem como confesso e indubitável, era totalmente desconhecida da
Igreja antiga.
João Calvino
João Calvino
A TRÍADE DE FATORES QUE CONFERIRAM À SÉ ROMANA SUA POSIÇÃO ÚNICA DE PRESTÍGIO, PODER E INFLUÊNCIA
Venhamos agora à Igreja antiga, para que também se faça manifesto que nossos
adversários blasonam de seu sufrágio não menos infundada e falsamente que do
testemunho da Palavra de Deus. Portanto, quando alardeiam aquele seu axioma, a
saber, que não se pode manter a unidade da Igreja de outra sorte senão que se faz
necessário haver na terra uma única cabeça suprema, à qual todos os membros obedeçam,
e por isso o Senhor deu o primado a Pedro, e daí, por direito de sucessão, à
sé romana, para que nela resida até o fim; asseveram que isso foi observado sempre,
desde o início. No entanto, visto que torcem indevidamente a muitos testemunhos,
primeiro quero prefaciar que não nego que os antigos, por toda parte, atribuam
grande honra à igreja de Roma, e dela falem com reverência, o que julgo originar-se
de três causas, mui especialmente.
Ora, em primeiro plano, aquela opinião, a qual não sei como chegou a prevalecer,
de que ela foi fundada e constituída pelo ministério de Pedro, era de muita valia
para conciliar-lhe favor e autoridade. Assim sendo, no ocidente, ela era honorificamente
chamada Sé Apostólica. Em segundo lugar, como ali estivesse a cabeça do
Império, também por esta razão seria crível que aí os homens fossem mais eminentes,
seja na doutrina, seja na prudência, seja na perícia e no uso de muitas coisas,
que em qualquer outro lugar. Em razão desse fato, tinha-se consideração que não se
devesse subestimar não apenas a nobreza da cidade, mas também a existência nela
de outros dons de Deus muito mais excelentes. A estas duas se acrescentou, ademais,
uma terceira razão: que, enquanto as igrejas orientais e as da Grécia, mesmo
as africanas, se tumultuassem entre si em muitas dissenções de opiniões, esta foi
mais plácida do que as outras, e menos turbulenta. Assim aconteceu que bispos pios
e santos, arredados de suas sés, aí freqüentemente se acolhessem como se num
refúgio ou num como que porto. Ora, de quão menos agudo e vívido engenho são os
ocidentais que os asiáticos e os afros, também tanto menos ávidos de coisas novas.
Portanto, isto acrescentou muito de autoridade à igreja romana, ou, seja, que naqueles
tempos dúbios ela não foi tão tumultuada como as demais, e se dedicou na doutrina,
de uma vez por todas, com mais tenacidade que todas as restantes, como
explicaremos melhor imediatamente a seguir. Em razão destas três causas, reitero que a sé romana foi tida em não vulgar honra e recomendada por muitos eminentes
testemunhos dos antigos.
João Calvino
João Calvino
À LUZ DE OUTROS ESCRITOS DE PAULO, A TESE É AINDA MAIS CORROBORADA DE QUE PEDRO NÃO FOI BISPO EM ROMA; O QUE ENCONTRAMOS ALI É O APOSTOLADO DE PAULO
Mais tarde Paulo é conduzido preso a Roma [At 28.16]. Lucas narra [At 28.15]
que ele foi recebido pelos irmãos; quanto a Pedro, nada se menciona. Dali escreve a
muitas igrejas. Em alguma parte das epístolas daí escritas também envia saudações
em nome de outras pessoas; não diz uma palavra sequer que indique que Pedro
então esteve ali. Pergunto, pois, quem acreditará que podia guardar silêncio, se Pedro
estivesse ali presente? Mais ainda, na Epístola aos Filipenses, onde disse que
ninguém cuida tão fielmente da obra do Senhor como o faz Timóteo, se queixa de
que todos buscam o que é seu [Fp 2.19-21]. E ao próprio Timóteo ele expressa a
queixa com mais gravidade: que ninguém esteve presente em sua primeira defesa;
ao contrário, todos o desampararam inteiramente [2Tm 4.16]. Portanto, onde Pedro
estava então? Ora, se dizem que ele estava em Roma, quão terrível ignomínia Paulo
lhe imprime: que ele foi desertor do evangelho! Certamente que ele está falando de
fiéis, porque acrescenta: “que Deus não lhes impute isso” [2Tm 4.16].
Por quanto tempo, pois, e em que época ocupou Pedro essa sé? Dirão, porém,
que é constante a opinião dos escritores de haver ele governado essa igreja até a
morte. Entretanto, entre esses mesmos escritores não está solidamente estabelecido
quem foi seu sucessor, pois alguns afirmam ter sido Lino, e outros que foi Clemente.
E narram muitas estórias absurdas acerca da disputa havida entre ele e Simão
Mago. Tampouco dissimula Agostinho, disputando a respeito das superstições, de
uma opinião inconsideradamente concebida de que se implantara em Roma o costume
de que não jejuassem nesse dia em que Pedro vencera Simão Mago. Afinal, as
coisas desse tempo são a tal ponto enredilhadas em uma variedade de opiniões, que
não se deve dar fé inconsideradamente, quando lemos algo escrito. E no entanto, em
razão deste consenso dos escritores, não discordo que ele tenha morrido aí; mas que
ele foi bispo, especialmente por longo tempo, não há como me persuadir. Tampouco
me preocupo muito com o fato de Paulo haver atestado que o apostolado de Pedro
pertenceu peculiarmente aos judeus, enquanto que o seu pertenceu a nós [Gl 2.7, 8].
Conseqüentemente, para que aquele pacto que foi firmado entre eles [Gl 2.9] se cumprisse em relação a nós, aliás, para que a ordenança do Espírito Santo se firmasse
entre nós, nos convém atentar mais para o apostolado de Paulo que de Pedro,
porquanto de tal modo o Espírito Santo dividiu entre eles as províncias, que Pedro
se destinasse aos judeus, e Paulo, a nós. Agora, pois, que os romanistas busquem
seu primado em outra parte além da Palavra de Deus, na qual não encontrarão nenhum
fundamento.
João Calvino
João Calvino
É MUITO INCERTO SE PEDRO DE FATO ESTEVE EM ROMA, MENOS AINDA QUE FOI SEU BISPO
Não vejo, porém, se deva dar algum crédito a sua alegação de que Pedro ocupou
a sé romana. Certamente que, o que está em Eusébio – que ele aí presidira vinte e
cinco anos –, isso se refuta com nenhuma dificuldade. Pois à luz do primeiro e
segundo capítulo da Epístola aos Gálatas se faz evidente que ele esteve em Jerusalém
cerca de vinte anos, desde a morte de Cristo; em seguida, que foi para Antioquia,
onde por quanto tempo permaneceu é incerto. Gregório conta sete; Eusébio,
porém, vinte e cinco anos. Mas, desde a morte de Cristo até o fim do império de
Nero, sob quem afirmam haver ele sido morto, se acharão apenas trinta e sete anos.
Ora, o Senhor padeceu sob Tibério, no décimo oitavo ano de seu império. Se forem
deduzidos vinte anos, durante os quais Paulo é testemunha de que Pedro habitava
em Jerusalém, restarão dezessete no máximo, os quais têm de ser agora repartidos
entre os dois episcopados. Se ele morou em Antioquia por longo tempo, então não
pôde ter sé em Roma, senão por bem pouco tempo.
Isto mesmo é possível demonstrar ainda mais claramente. Paulo escreveu aos
romanos de caminho [Rm 15.25], quando estaria de viagem para Jerusalém, onde
foi aprisionado e conduzido a Roma. Portanto, é verossímel que esta Epístola fosse
escrita no quadriênio antes que o Apóstolo viesse a Roma. Aí não se faz nenhuma menção de Pedro, a qual de modo algum poderia ser omitida, caso houvesse ele
regido essa igreja. Além disso, no final da Epístola [Rm 16.3-16], enquanto recita
longo catálogo dos piedosos a quem solicita sejam enviadas saudações, de fato onde
cataloga todos os seus conhecidos, ele mantém total silêncio a respeito de Pedro.
Nem aqui se faz necessário uma longa ou sutil demonstração entre os homens de
juízo mais íntegro, pois o próprio fato, e todo o argumento da Epístola, argumentam
que ele não poderia preterir a Pedro, caso estivesse em Roma.
João Calvino
João Calvino
O ABSURDO DO PRIMADO DE ROMA EVIDENCIADO EM RELAÇÃO A OUTRAS SÉS, ÀS QUAIS SE DEVERIA NECESSARIAMENTE APLICAR O PRINCÍPIO
Mas, consideremos que seja assim, e presumamos que o primado foi transferido
de Antioquia para Roma. Por que, pois, Antioquia não reteve o segundo lugar? Ora,
se de fato Roma exerce o primeiro lugar, que aí Pedro teve sua sé até o término da vida, a que cidade se dará antes o segundo lugar, na qual ocupara ele a primeira sé?
Como aconteceu, pois, que Alexandria tivesse precedência sobre Antioquia? Como
foi possível que a igreja de um mero discípulo seja superior à sé de Pedro? Se a cada
igreja se deve honrar conforme a dignidade de seu fundador, que diremos também
das demais igrejas? Paulo enumera três que pareciam ser as colunas: Tiago, Pedro e
João [Gl 2.9]. Se porventura atribuir-se à sé romana o primeiro lugar em honra a
Pedro, porventura as igrejas de Éfeso e Jerusalém não merecem o segundo e o terceiro,
onde tiveram suas sés João e Tiago? Com efeito, Jerusalém outrora teve entre
os patriarcados o último lugar; Éfeso, de fato, nem mesmo pôde garantir o último
canto! Outras igrejas foram também preteridas, não importa quantas e quaisquer
Paulo tenha fundado, quantas os demais apóstolos estiveram à frente. A sé de Marcos,
que foi apenas um dentre os discípulos, obteve a honra sobre todas essas igrejas.
Confessem que esta ordem é bem estranha; ou, antes, concedam que não há
correspondência entre o grau de honra que se concede a uma igreja e a dignidade de
seu fundador.
João Calvino
João Calvino
O RIDÍCULO DO PRIMADO PRÉVIO DE ANTIOQUIA, MAIS TARDE TRANSFERIDO PARA ROMA
Entretanto, vejamos como admiravelmente arrazoam. Afirmam que Pedro exerceu
o principado entre os apóstolos; portanto, a igreja na qual teve sua sede deve ter
este privilégio. Mas, onde ele teve primeiro sua sede? Em Antioquia, dizem eles.
Logo, a igreja antioquense, com direito, reivindica para si o primado. Declara que
ela outrora era a primeira, mas que Pedro, emigrando aí, transferiu a Roma a honra
que trouxera consigo. Ora, sob o nome do papa Marcelo existe uma epístola aos
presbíteros antioquenses na qual assim fala: “A sé de Pedro esteve inicialmente
entre vós, a qual, mais tarde, o Senhor transferiu para cá. Assim sendo, a igreja
antioquense, que outrora era a primeira, cedeu sua vez à sé romana. Mas, pergunto
eu, em virtude de quê oráculo aquele bom homem foi pelo Senhor assim mandado?
Ora, se esta questão tiver que ser decidida pelo direito, então é indispensável
que respondam: porventura querem que este privilégio seja pessoal, real, ou misto?
Pois há de ser uma dessas três opções. Se for pessoal, então não tem nada a ver com
lugar; se, porém, for real, então, uma vez que foi estipulado um lugar, não se retira
dele em razão ou de morte ou de afastamento da pessoa. Resta, pois, a conclusão de
que foi misto; mas então não há que considerar simplesmente o lugar sem correspondência
com a pessoa. Que decidam pelo que quiserem; e facilmente convencerei
que de forma alguma se pode atribuir a Roma o primado que ela reivindica.
João Calvino
João Calvino
ADMITIDO O PAPEL VICÁRIO DE PEDRO, NÃO HÁ COMO LOGICAMENTE EMPRESTAR-LHE A NECESSÁRIA SUCESSÃO AO BISPO DE ROMA
Agora lhes farei outra concessão, a qual jamais obterão dos homens de mente sã
– isto é, que a primazia da Igreja foi fixada em Pedro, com vista a permanecer para
sempre por sucessão perpétua.74 Contudo, como convencerão que sua sé foi colocada
em Roma, que quem quer que fosse bispo dessa cidade presidiria ao mundo
inteiro? Com que direito vinculam a um lugar esta dignidade que foi dada sem menção de lugar? Dizem que Pedro viveu em Roma e aí morreu. Que dizer do
próprio Cristo? Porventura não exerceu em Jerusalém o episcopado, enquanto lá
viveu, e ao morrer aí não consumou o ofício de seu sacerdócio? O Príncipe dos
pastores, o Bispo Supremo, a Cabeça da Igreja não pôde adquirir essa honra para
um lugar; Pedro, muito inferior a ele, o adquiriu? Porventura tais sandices não são
mais que pueris? Cristo conferiu a Pedro a honra do primado; Pedro sediou-se em
Roma; logo, aí estabeleceu a sede do primado. Seguramente, com este arrazoado, os
israelitas de outrora devem constituir a sede do primado no deserto, onde Moisés,
mestre supremo e príncipe dos profetas, exercera seu ministério e morreu [Dt 34.5].
João Calvino
João Calvino
AS ESCRITURAS NÃO SÓ AFIRMAM QUE CRISTO CONTINUA ESPIRITUALMENTE PRESENTE NA IGREJA, COMO TAMBÉM NÃO REGISTRAM A EXISTÊNCIA DE UM VIGÁRIO SEU NA TERRA
Algumas vezes Paulo nos pinta a Igreja com cores vivas. Ele não faz menção
alguma de uma cabeça da Igreja na terra; ao contrário, à luz de sua descrição é fácil
coligir que tal figura é estranha à instituição de Cristo. Com sua ascensão, Cristo
retirou de nós sua presença visível [At 1.9]; contudo subiu para preencher todas as
coisas [Ef 4.10]; portanto, a Igreja agora o tem ainda presente, e haverá de tê-lo sempre. Quando Paulo quer mostrar a maneira pela qual ele se manifesta, nos traz
aos ministérios dos quais faz uso. “O Senhor está em todos nós”, diz ele, “segundo
a medida da graça que conferiu a cada membro” [Ef 4.7]. Por isso, “a uns constituiu
primeiramente apóstolos; a outros, porém, pastores; a outros, evangelistas; a outros,
mestres”; etc. [Ef 4.11]. Por que o apóstolo não diz que o Senhor constituiu um
sobre todos, para que fosse seu vigário? Pois a matéria que trata o exigia; e não teria
deixado de dizê-lo, se fosse verdade.
Cristo, diz o Apóstolo, está presente conosco. Como? Através do ministério de
homens a quem deu à Igreja para ser por eles governada. Por que não antes pela
cabeça ministerial, a quem pôs em seu lugar? Ele menciona, sim, a unidade, porém
em Deus e na fé em Cristo. Quanto aos homens, não lhes atribui nada, senão o
ministério comum e a cada um sua porção particular. Ao nos encomendar a unidade,
dizendo que somos um corpo e um espírito, que temos uma mesma esperança de
vocação, um só Deus, uma mesma fé e um só batismo [Ef 4.4, 5], por que não
acrescenta logo que temos um sumo pontífice, que sustenta a unidade da Igreja?
Porque, se fosse assim, não poderia dizer nada que viesse mais a propósito. Que
ponderem bem esta passagem, e tomem nota dela. Não há dúvida de que Paulo quis
aí representar o governo total, sagrado e espiritual da Igreja, o qual os que vieram
depois chamaram hierarquia. Ora, ele não admite monarquia nem principado algum
de um homem só entre os ministros. Ao contrário, ele dá a entender que tal
coisa não existe. Tampouco se pode duvidar que ele quisesse expor a maneira da
união com que os fiéis estão unidos com Cristo, sua Cabeça. Pois aí ele não só não
menciona nenhuma cabeça ministerial, mas inclusive atribui a cada membro sua
operação particular [Ef 4.16], segundo a medida da graça distribuída a cada um [Ef
4.7]. Tampouco existe razão para estabelecer sutilmente comparação da hierarquia
celestial e terrena; pois da hierarquia celestial não necessitamos saber mais que
aquilo que a Escritura diz; e para constituir a ordem que temos sobre a terra não
devemos seguir outro padrão além daquele que o Senhor mesmo nos deu.
João Calvino
João Calvino
CRISTO, E TÃO-SOMENTE CRISTO, É O CABEÇA DA IGREJA, E NÃO DELEGOU A OUTREM TAL SOBERANIA COMO SEU SUPOSTO VIGÁRIO NA TERRA
Mas, concedendo-lhes como querem, seja bom e útil que o orbe inteiro seja
abarcado em uma única monarquia – o que no entanto é inteiramente absurdo; todavia,
ainda quando é assim, não concederei que isso mesmo valha no governo da
igreja. Ora, ela tem a Cristo por seu Cabeça único, sob cujo principado todos nos
congregamos em harmonia, segundo esta ordem e esta forma de governo que ele
mesmo prescreveu. Assim sendo, fazem a Cristo uma frontal injúria, quando com
esse pretexto querem que um único homem presida à Igreja inteira, visto que esta
não carece de um cabeça. “Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo
naquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, bem ajustado e ligado pelo
auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do
corpo, para sua edificação com amor” [Ef 4.15, 16]. Vês que a todos os mortais, sem
exceção, ele coloca no corpo, a honra e o nome de cabeça deixa exclusivamente a
Cristo? Vês que a cada membro atribui medida certa e função finita e limitada, para
que tanto a perfeição da graça, quanto o supremo poder de governar, resida unicamente
na mão de Cristo?
Tampouco desconheço o que costumam tergiversar quando se lhes afirma que
Cristo é apropriadamente denominado a Cabeça única porque, por sua autoridade e
por seu nome, somente ele reina, mas nada impede que abaixo dele esteja outra,
como dizem, cabeça ministerial, que lhe faça as vezes nas terras. No entanto, com
esta cavilação não conseguem nenhuma vantagem, a menos que antes mostrem que
este alegado ministério foi ordenado por Cristo. Ora, o Apóstolo ensina que toda a
administração é difundida pelos membros, e que a virtude procede daquela Cabeça
celestial única. Ou, se preferem algo mais taxativo: quando a Escritura atesta que
Cristo é a Cabeça, e que ele reivindica esta honra somente para si, não se deve
transferi-la a outro, a não ser a quem o próprio Cristo haja feito seu vigário. Com
efeito, isto não só se lê em parte alguma da Escritura, mas também pode ser refutado
sobejamente por muitas passagens [Ef 1.22; 4.15; 5.23; Cl 1.18; 2.10].
João Calvino
João Calvino
MESMO ADMITIDO O PRIMADO DE PEDRO SOBRE OS DOZE, ISSO NÃO LHE FACULTA AUTORIDADE ABSOLUTA SOBRE TODA A IGREJA
Mas ainda que a respeito de Pedro eu lhes conceda o que defendem, isto é, haver
ele sido o príncipe dos apóstolos, e que foi superior em dignidade aos demais, contudo
não é motivo para que, de um exemplo singular, façam uma regra universal, e
o que foi feito uma vez transponham à perpetuidade, quando a situação é bem diversa.
Um foi supremo entre os apóstolos, seguramente porque eram poucos em número.
Se um presidiu a doze homens, em razão disso porventura se seguirá que um
deva ser o guia de cem mil homens? Que doze tivessem entre si um que liderasse a
todos, que surpreende nisso? Ora, a natureza admite tal coisa, o engenho dos homens
exige que em qualquer assembléia, ainda que sejam todos iguais em poder,
contudo um seja como que o moderador, em relação ao qual os outros voltem sua
atenção. Nenhuma reunião senatorial existe sem o cônsul; nenhuma sessão de juízes,
sem o pretor, ou questor; corporação nenhuma, sem seu presidente; nenhuma
sociedade, sem seu chefe. Assim sendo, não haveria absurdo algum se confessássemos
que os apóstolos deferiram a Pedro tal primado. Mas o que tem lugar respectivo
a um número pequeno não pode tornar-se extensivo a todo o mundo, ao qual é
impossível que um só homem governe. Com efeito, dizem eles, isso tem lugar não menos na totalidade da natureza, do
que em suas partes, uma a uma: que haja um cabeça supremo de todas as coisas. E
em confirmação trazem o exemplo do grou e das abelhas, que para si sempre escolhem
um único chefe, não muitos. Certamente que admito os exemplos que trazem
a lume; mas porventura as abelhas se congregam de todo o orbe para eleger um só
rei? Cada rei está contente com sua colméia. Assim se dá também com os grous:
cada bando tem seu próprio rei. Que outra coisa daí conseguirão senão que a cada
igreja se deve atribuir seu bispo?
A seguir nos conclamam a exemplos civis: citam aquele verso homérico: – Não é bom o governo de muitos]
e o que, no mesmo sentido, em enaltecimento da monarquia se diz em escritores
profanos. A resposta é fácil, pois não é neste sentido, quer por Ulisses homérico, ou
pelos outros, que a monarquia é louvada, como se um só deva reger em soberania a
todo o orbe; antes, querem indicar que dois não podem assumir um reino, e que o
poder, como diz aquele, não pode suportar parceria.
João Calvino
João Calvino
A POSIÇÃO REAL DE PEDRO NO COLÉGIO APOSTÓLICO, DE IGUALDADE E NÃO DE SUPERIORIDADE; TAMPOUCO USUFRUIU NA IGREJA PRIMITIVA AUTORIDADE ESPECIAL
E no entanto ninguém, deveras, pode melhor resolver esta questão do que a
própria Escritura, caso confiramos todas suas passagens onde ela ensina qual o
ofício e o poder que Pedro exerceu entre os apóstolos, como ele se comportou,
como também foi por eles recebido. Que se percorra nela tudo quanto se possa, e
outra coisa não se achará senão que ele foi um do número dos Doze, igual aos
demais e seu companheiro, não seu senhor. É verdade que ele propõe na assembléia
o que se deve fazer e admoesta aos demais; mas também os ouve; e não lhes permite
emitir sua opinião, mas que ordenem e determinem o que bem lhes parecesse [At
15.6-22]. E quando eles determinaram alguma coisa, ele obedece e a segue. Quando
escreve aos pastores, não ordena por mando, como um superior; antes, os toma
como seus colegas e os exorta amavelmente, como costuma acontecer entre iguais
[1Pe 5.1]. Quando é acusado de ir ter com gentios, ainda que isto se faça sem razão,
no entanto responde e se justifica [At 11.2-18]. Mandado pelos colegas que fosse
com João a Samaria, não se recusa [At 8.14]. O fato de os apóstolos o mandarem,
nisto declaram que estão muito longe de o terem por superior; o fato de que obedece
e empreende a missão a si ordenada, nisto confessa ter com eles associação, não
domínio sobre eles.
Ora, se nada dessas coisas subsistisse, entretanto bastaria a Epístola aos Gálatas
para facilmente dirimir-nos toda dúvida, quando, em quase dois capítulos, outra
coisa não trata Paulo senão de ser igual a Pedro na honra do apostolado. Daqui nos
lembra que veio a Pedro, não para que lhe professasse sujeição, mas apenas para
que a todos testificasse o consenso doutrinal; que também o próprio Pedro não exigiu
nada desse gênero; ao contrário, deu-lhe a destra de comunhão para que trabalhassem
em comum na vinha do Senhor; que a ele foi conferida graça não inferior
entre os gentios que a Pedro entre os judeus; finalmente, que, visto que Pedro agiu
menos fielmente, foi por ele corrigido e acatou sua repreensão [Gl 2.11-14]. Todas
estas coisas tornam evidente que ou houve igualdade entre Paulo e Pedro, ou certamente
Pedro não teve em nada mais poder sobre os outros apóstolos do que eles
mesmos tiveram sobre ele. Com efeito, como já o disse, Paulo afirma expressamente
que em seu apostolado não teve por inferior nem a Pedro nem a João, porque
todos são iguais a ele e seus companheiros, e não seus senhores.
João Calvino
João Calvino
O SIGNIFICADO DE MATEUS 16.18 NÃO É OBSCURO, E ESTÁ LONGE DE CONSTITUIR A PEDRO O FUNDAMENTO DA IGREJA, PRERROGATIVA EXCLUSIVA DE CRISTO
Uma vez que não estamos ainda nessa discussão, no momento quero manter
apenas que o argumento deles é em extremo fútil, pretendendo estabelecer somente
no nome de Pedro o império de um só homem sobre toda a Igreja. Ora, aquelas
velhas parvoíces com as quais tentaram de início embair são indignas até de referência,
muito menos de refutação, ou, seja, que a Igreja foi fundamentada em Pedro,
porquanto se declarou: “Sobre esta pedra” etc. [Mt 16.18]. Mas, protestam, alguns
dentre os pais assim o interpretaram. Quando, porém, toda a Escritura brada em
contrário, por que interpõem sua autoridade contra a de Deus? Mais ainda, por que
disputamos acerca do sentido dessas palavras, como se fosse obscuro, ou ambíguo,
quando nada se pode dizer mais claro e mais certo? Pedro havia confessado, em seu
nome e dos irmãos, que Cristo é o Filho de Deus [Mt 16.16]. Sobre esta pedra71
Cristo edifica sua Igreja, porquanto é ela, como diz Paulo, o fundamento único,
além do qual não se pode colocar outro [1Co 3.11]. Tampouco repudio aqui a autoridade
dos pais por isso, como se não tivesse ninguém de meu lado se quisesse citálos,
mas porque não quero, conforme já disse, importunar os leitores delongando
excessivamente esta discussão; e também porque outros já trataram dele com bastante
amplitude e com plena competência.
João Calvino
João Calvino
terça-feira, 6 de novembro de 2018
A PEDRO ASSISTE O PRIMADO DE HONRA, MAS NÃO DE PODER
Mas em parte alguma lemos de se haver dito a algum outro: “Tu és Pedro, e
sobre esta pedra edificarei minha Igreja” [Mt 16.18]! Como se Cristo então estivesse
aí afirmando de Pedro outra coisa que o que eles mesmos, Paulo e Pedro, dissessem
de todos os cristãos! Pois aquele fala de Cristo como a pedra suprema e angular,
sobre a qual são edificados os que crescem como templo santo do Senhor [Ef 2.20,
21]; este, porém, declara que somos pedras vivas, bem fundamentadas naquela pedra
eleita e preciosa [1Pe 2.5, 6], mercê desta juntura e conexão estamos solidamente
ligados com nosso Deus e entre nós [Cl 2.19].
Dizem que ele está acima dos outros, porquanto tem o nome especialmente
referido. Certamente de bom grado concedo a Pedro esta honra: que ele seja colocado entre os primeiros no edifício da Igreja; ou, se também quiserem isto, que ele
seja o primeiro de todos os fiéis. No entanto não admitirei que se deduza disto que
tem o primado acima dos outros. Ora, que modo de concluir é este de que Pedro
excede aos outros no fervor do zelo, na doutrina, na magnitude de ânimo, aliás, tem
poder sobre eles? Como se realmente eu não pudesse concluir, e com melhor razão,
que André está acima de Pedro em eminência, porque o antecedeu no tempo e o
conduziu a Cristo [Jo 1.40, 42]. Mas não tomo isso em consideração. É incontestável
que Pedro tenha a primazia. Contudo, existe uma grande diferença entre honra e
eminência e poder. Vemos que os apóstolos concederam ordinariamente a Pedro a
honra de ser o primeiro a falar na assembléia dos fiéis, de certo modo exercesse
sobre eles a preeminência na discussão, na exortação, na admoestação. Mas de sua
autoridade sobre os demais, não lemos uma só palavra.
João Calvino
João Calvino
TAMPOUCO O PRIMADO EXCLUSIVO A PEDRO CONFERE O PODER DAS CHAVES
Já adverti quão indignamente torcem aquelas passagens que fazem menção de
ligar e desligar, por um lado; por outro, se haverá de expor mais profusamente pouco
mais adiante. Por ora faz-se necessário ver apenas o que eles extraem daquela
celebrada resposta de Cristo a Pedro. Ele promete dar-lhe as chaves do reino dos
céus. Disse que tudo quanto ligasse na terra seria ligado nos céus [Mt 16.19]. Se
entre nós houver acordo quanto ao termo chaves e ao modo de ligar, então imediatamente
toda disputa cessará. Ora, mesmo o papa de bom grado deixará de parte o
encargo imposto aos apóstolos, o qual, pleno de labor e enfado, lhe despojaria de
seus prazeres, sem qualquer lucro. Uma vez que pela doutrina do evangelho os céus
nos são abertos, ela é adornada de elegante metáfora pelo termo chaves. Os homens
já não são ligados e desligados de outro modo, senão enquanto a uns a fé reconcilia
com Deus, a outros sua incredulidade mais o comprova. Se o papa assumisse só isto
para si, creio que ninguém se deixaria mover de inveja ou do espírito de contenda.
Mas, visto que esta sucessão, laboriosa e bem pouco rentável, de maneira alguma
sorri para o papa, já daí nasce o princípio de litígio quanto ao que Cristo haja prometido
a Pedro. Eu, da própria matéria, concluo que aqui se denota apenas a dignidade
do ofício apostólico, a qual não se pode dissociar do ônus envolvido. Ora, se for
recebida aquela definição que propus, a qual só se pode rejeitar impudentemente,
aqui nada se dá a Pedro que não fosse comum também aos colegas, porque, de outra
maneira, não só se faria dano à suas pessoas, mas também claudicaria a própria
majestade da doutrina.
Em contrário, eles bradam. Indago, porém: que aproveita arremeter-se contra essa rocha? Porque nunca conseguirão que, assim como a pregação de um mesmo
evangelho foi imposta a todos os apóstolos, assim também todos eles foram providos
em comum do poder de ligar e desligar. Cristo, dizem eles, constituiu a Pedro
príncipe de toda a Igreja, quando prometeu que lhe daria as chaves. Com efeito, o
que então prometeu a um só, em outro lugar [Mt 18.18; Jo 20.23] confere, e como
que à mão entrega, a todos os demais a um só tempo! Se a mesma prerrogativa que
se promete a um é outorgada a todos, como um pode ser superior aos demais? Dizem que a preeminência consiste nisto: que ele recebe não só em comum, mas
também separadamente, o que aos outros não é dado senão em comum. E se responder
com Cipriano e Agostinho, que Cristo fez isso não para que um homem só
preferisse aos demais, mas para que assim recomendasse a unidade da Igreja?
Pois assim fala Cipriano: “Na pessoa de um só homem o Senhor deu as chaves
a todos, para que denotasse a unidade de todos. Conseqüentemente, os demais foram
o que Pedro era, dotados com igual participação tanto de honra quanto de poder,
mas o ponto de partida faz-se da unidade, para que a Igreja de Cristo se mostre
una.”68 Agostinho, porém: “Se em Pedro não estivesse o ministério da Igreja, o
Senhor lhe não diria: ‘Dar-te-ei as chaves’, pois se isto foi dito a Pedro, então a
Igreja não as tem; entretanto, se a Igreja as tem, quando Pedro recebeu as chaves,
representou toda a Igreja.” Em outro lugar: “Todos foram interrogados, mas somente
Pedro responde: ‘Tu és o Cristo’; e este lhe diz: ‘Dar-te-ei as chaves’, como se ele
só tivesse recebido o poder de ligar e desligar, enquanto ele falou por todos e recebeu
comum a todos, sendo, por assim dizer, o representante da unidade. Um recebeu
por todos, porque a unidade está em todos.”
João Calvino
João Calvino
TAMPOUCO AS CELEBRADAS PALAVRAS DE CRISTO A PEDRO, EM MATEUS 16.18 E JOÃO 21.15, RESPALDAM ESSE PRIMADO
Portanto, não há razão por que, como se procedesse de uma lei perpétua, nos
constranjam com esse exemplo, o qual notamos ter sido temporário. Do Novo Testamento
nada têm que possam alegar para confirmação de sua tese, a não ser o que
foi dito a uma pessoa: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja” [Mt16.18]; igualmente: “Pedro, tu me amas? Apascenta minhas ovelhas” [Jo 21.15].
Aliás, para que essas provas sejam firmes, é preciso antes de mais nada mostrar que
àquele que se ordena apascentar o rebanho de Cristo é conferido poder sobre todas
as igrejas; tampouco ligar e desligar significa outra coisa senão presidir sobre o
mundo todo. De fato, como Pedro recebera do Senhor o mandado, por isso exorta a
todos os demais presbíteros que apascentem a Igreja [1Pe 5.2]. Aqui é lícito concluir
ou que, por aquela palavra de Cristo, nada foi dado a Pedro acima dos demais, ou que
o direito que Pedro recebera ele compartilhou com os outros em pé de igualdade.
Mas para que não litiguemos em vão, temos em outro lugar [Jo 20.23] exposição
clara da boca de Cristo do que significa ligar e desligar, a saber: reter e perdoar
pecados. De fato o modo de ligar e desligar não só mostra toda a Escritura, a cada
passo, como também excelentemente o declara Paulo, quando diz que os ministros
do evangelho têm o mandado de reconciliar os homens com Deus, e ao mesmo
tempo têm o poder de exercer vingança sobre aqueles que desprezarem este benefício
[1Co 5.18; 10.6].
João Calvino
João Calvino
IMPROCEDÊNCIA DO ARGUMENTO DE QUE O PRIMADO DO PAPA ACHA RESPALDO OU, MELHOR, CORRESPONDE À AUTORIDADE ÚNICA DO SUMO SACERDOTE LEVÍTICO
Este, pois, é o estado da questão: Se para a verdadeira constituição da hierarquia,
como a chamam, ou da ordem eclesiástica, é necessário que uma sé tenha
eminência entre as outras, tanto em dignidade quanto em poder, de sorte que seja a
cabeça de todo o corpo. Nós, porém, sujeitamos a Igreja a leis demasiado iníquas se,
à parte da Palavra de Deus, lhe impomos esta necessidade. Portanto, se nossos adversários
querem conseguir o que postulam, é preciso primeiro mostrar que esta
economia foi institituída por Cristo. Neste sentido, citam da lei o sumo sacerdócio,
de igual modo, a suprema judicatura que Deus instituiu em Jerusalém.
Mas a resposta é fácil, e é múltipla, caso alguém não fique satisfeito. Primeiro,
o que foi útil em uma nação, não significa que isso deva estender-se ao mundo
inteiro; de fato, a constituição de uma nação e do mundo inteiro será muito diversa.
Porque os judeus estavam cercados de todos os lados por idólatras; para que não
fossem arrastados em diferentes direções pela variedade de religiões, Deus colocou
a sede de seu culto na parte central da terra, propondo aí um antístite único para
quem todos voltassem as vistas, para que melhor fossem mantidos em unidade.
Agora, quando a verdadeira religião se difundiu por todo o orbe, quem não vê ser
inteiramente absurdo que se dê a um só a direção do Oriente e do Ocidente? Ora, é
exatamente como se alguém afirmasse que por um só dirigente se deve governar o
mundo inteiro, só porque um território não possui muitos dirigentes.
Mas ainda há uma outra razão por que isso não deva ser imitado. Que aquele
sumo pontífice foi um tipo de Cristo ninguém ignora. Agora, para o sacerdócio ser
transferido, convém que aquele direito seja transferido [Hb 7.12]. No entanto, a
quem ele foi transferido? Evidentemente, não ao papa, como ele próprio se atreve
impudentemente a vangloriar-se, reivindicando este título em proveito próprio, mas
a Cristo; e como este exerce o ofício por si só, sem vigário nem sucessor algum, a
nenhum outro transfere a honra. Pois este sacerdócio não consiste apenas no ensino,
mas também na propiciação de Deus, que Cristo cumpriu em sua morte, bem como
naquela intercessão que agora exerce junto ao Pai.
João Calvino
João Calvino
A CENTRALIDADE DO BISPO DE ROMA PARA A QUAL CONVERGE TODA A UNIDADE, AUTORIDADE E APOSTOLICIDADE DA IGREJA, SEGUNDO O ROMANISMO
DO PRIMADO DA SÉ ROMANA
Até aqui passamos em revista essas ordens da Igreja que existiram no governo da Igreja antiga, mas que depois foram corrompidas pelos tempos; a seguir, mais e mais viciadas, na Igreja papal retêm agora apenas o título, de fato não passam de máscaras, de sorte que o leitor piedoso perceba da comparação que sorte de Igreja os romanistas têm, em abono da qual nos fazem réus de cisma, porquanto nos separamos dela. Mas, a cabeça e fastígio de toda a ordem eclesiástica, isto é, o primado da sé romana, do quê porfiam por provar que tão-somente na posse deles está a Igreja Católica, nem mesmo tocamos, porque não teve origem nem da instituição de Cristo, nem do uso da Igreja antiga, como o tiveram aqueles elementos supracitados, os quais já mostramos terem surgido da antigüidade e que já se degeneraram inteiramente pela corrupção dos tempos; aliás, se revestiram de forma completamente nova. E no entanto tentam persuadir ao mundo que este é o principal e quase que vínculo único de unidade eclesiástica: que nos apeguemos à sé romana e perseveremos em sua obediência. Reitero que neste sustentáculo, mais do que tudo, se apóiam quando nos querem arrebatar a Igreja e reivindicá-la para si: que retêm a cabeça da qual depende a unidade da Igreja e sem a qual necessariamente ela se desintegra e se faz em pedaços. Pois pensam que a Igreja é um corpo de certo modo mutilado e truncado, a menos que ela se sujeite à sé romana como a sua cabeça. Assim sendo, quando disputam a respeito de sua hierarquia, sempre tomam o ponto de partida deste axioma: o pontífice romano, como vigário de Cristo, que é a Cabeça da Igreja, preside em seu lugar sobre a Igreja Universal; de outra sorte a Igreja não seria bem constituída, a não ser que aquela sé tenha o primado sobre todas as demais. Por esta razão, é preciso examinar também qual é a natureza deste primado, para que não omitamos algo que diga respeito ao justo governo da Igreja.
João Calvino
Até aqui passamos em revista essas ordens da Igreja que existiram no governo da Igreja antiga, mas que depois foram corrompidas pelos tempos; a seguir, mais e mais viciadas, na Igreja papal retêm agora apenas o título, de fato não passam de máscaras, de sorte que o leitor piedoso perceba da comparação que sorte de Igreja os romanistas têm, em abono da qual nos fazem réus de cisma, porquanto nos separamos dela. Mas, a cabeça e fastígio de toda a ordem eclesiástica, isto é, o primado da sé romana, do quê porfiam por provar que tão-somente na posse deles está a Igreja Católica, nem mesmo tocamos, porque não teve origem nem da instituição de Cristo, nem do uso da Igreja antiga, como o tiveram aqueles elementos supracitados, os quais já mostramos terem surgido da antigüidade e que já se degeneraram inteiramente pela corrupção dos tempos; aliás, se revestiram de forma completamente nova. E no entanto tentam persuadir ao mundo que este é o principal e quase que vínculo único de unidade eclesiástica: que nos apeguemos à sé romana e perseveremos em sua obediência. Reitero que neste sustentáculo, mais do que tudo, se apóiam quando nos querem arrebatar a Igreja e reivindicá-la para si: que retêm a cabeça da qual depende a unidade da Igreja e sem a qual necessariamente ela se desintegra e se faz em pedaços. Pois pensam que a Igreja é um corpo de certo modo mutilado e truncado, a menos que ela se sujeite à sé romana como a sua cabeça. Assim sendo, quando disputam a respeito de sua hierarquia, sempre tomam o ponto de partida deste axioma: o pontífice romano, como vigário de Cristo, que é a Cabeça da Igreja, preside em seu lugar sobre a Igreja Universal; de outra sorte a Igreja não seria bem constituída, a não ser que aquela sé tenha o primado sobre todas as demais. Por esta razão, é preciso examinar também qual é a natureza deste primado, para que não omitamos algo que diga respeito ao justo governo da Igreja.
João Calvino
A OPULÊNCIA PRINCIPESCA DE BISPOS E CLÉRIGOS EM AGUDO CONTRASTE COM A SOBRIEDADE PRECEITUADA NA ESCRITURA E NOS CÂNONES ANTIGOS
Quanto à renda que recebem de campos e propriedades, que outra coisa direi
senão o que já disse e está diante dos olhos de todos? Vemos com que fidelidade os
que se chamam bispos e abades administram a maior parte dos bens eclesiásticos.
Seria, pois, uma insânia buscar entre eles uma ordem eclesiástica! Porventura é
justo que os bispos e abades queiram igualar-se com os príncipes na multidão de
criados, no fausto, nas vestes e na suntuosidade da mesa e da casa, quando sua vida
deveria ser um exemplo e um provérbio de sobriedade, temperança, modéstia e
humildade? É próprio de um pastor apropriar-se não só de cidades, vilas e castelos,
mas também de grandes condados e ducados, e finalmente deitar suas garras sobre
reinos e impérios, quando o mandamento inviolável de Deus lhes proíbe toda cobiça
e avareza, e lhes ordena que vivam com simplicidade [Tt 1.7]?
Se desprezam a Palavra de Deus, que responderão àqueles vetustos decretos dos
sínodos nos quais se estatui que o bispo tenha uma habitação não distante da Igreja,
mesa e mobília baratas? O que replicarão àquela formulação do Concílio de Aquiléia
em que se proclama ser gloriosa a pobreza nos sacerdotes do Senhor? Ora,
talvez repudiarão como demasiado austero aquilo que Jerônimo preceitua a Nepociano:
que os pobres e peregrinos conheçam sua mesa modesta e que Cristo conviva
com eles. Com efeito, terão eles vergonha de rejeitar o que Jerônimo adiciona logo
a seguir, que a glória do bispo é prover os haveres dos pobres, e que a ignomínia de todos os sacerdotes é diligenciar pelas riquezas pessoais. Eles, porém, não podem
admitir isto sem que todos se condenem à ignomínia. Contudo, aqui não se faz
necessário persegui-los mais duramente, quando outra coisa não querem senão demonstrar
que entre eles desde muito já foi detraída a ordem legítima do diaconato,
de sorte que não mais se ensoberbeçam com este título para recomendação de sua
Igreja. Creio que este ponto está sobejamente discutido.
João Calvino
João Calvino
OS FUNDOS ECLESIÁSTICOS APLICADOS AO LUXO, AO ESPLENDOR, À OSTENTAÇÃO DE TEMPLOS E SANTUÁRIOS EM DETRIMENTO DA ASSISTÊNCIA AOS POBRES E NECESSITADOS
Com efeito, para que não sejamos mais prolixos aqui, de novo reunamos em
breve síntese quão longe está da verdadeira diaconia, a qual a Palavra de Deus não
só nos recomenda, mas também a Igreja antiga observou, essa que agora é ou dispensação,
ou dissipação dos bens eclesiásticos. O que se confere ao ornato de templos
digo ser indevidamente depositado, caso não seja aplicada essa moderação que
não só prescreve a própria natureza das coisas sagradas, mas ainda, tanto por meio
do ensino quanto por meio de exemplos, os apóstolos e outros santos pais prescreveram.
O que, porém, se contempla hoje nos templos? Digo que foi rejeitado tudo
quanto se conformava não àquela ínfima frugalidade, mas a alguma honesta moderação.
Nada, absolutamente, agrada senão o que vise ao luxo e à corrupção dos
tempos. Enquanto isso, tão longe está de que nutram justa preocupação pelos templos
vivos, que antes permitam que pereçam de fome muitos milhares de pobres do
que gastarem o menor cálice ou jarrinho para mitigar-lhes a penúria.
Para que de mim mesmo não diga algo mais pesado, gostaria que apenas que os leitores pios cogitem isto: se fosse possível que os santos bispos, que já citamos, a saber, Exupério, Acácio e Ambrósio, ressuscitassem dentre os mortos, que diriam? Por certo que, ante tão grande carência dos pobres, não aprovariam que as riquezas sejam transferidas para outro uso, em coisas que são supérfluas. Pelo contrário, se ofenderiam grandemente ao ver que se gastavam em abusos perniciosos, ainda que houvesse pobres a quem dá-los. Mas, deixemos de parte os homens. Esses bens foram dedicados a Cristo, conseqüentemente devem ser administrados segundo seu arbítrio. Em vão, porém, atribuirão a Cristo esta parte assim gasta, que têm dissipado em oposição a seu mandado, ainda que, para falar a verdade, não muito da renda ordinária da Igreja é consumido com esses gastos. Pois nenhum bispado é tão opulento, nenhuma abadia tão excelente, afinal nenhum sacerdócio tão numeroso, nem tão vasto, que bastem para satisfazer à voracidade dos sacerdotes. Com efeito, enquanto querem poupar para si próprios mediante superstição, induzem o povo a que se construam templos, que se erijam imagens, a que se comprem vasos, a que se preparem vestes caras, desviando assim o que era para ser distribuído aos pobres. Assim sendo, neste sorvedouro são tragadas as esmolas de cada dia.
João Calvino
Para que de mim mesmo não diga algo mais pesado, gostaria que apenas que os leitores pios cogitem isto: se fosse possível que os santos bispos, que já citamos, a saber, Exupério, Acácio e Ambrósio, ressuscitassem dentre os mortos, que diriam? Por certo que, ante tão grande carência dos pobres, não aprovariam que as riquezas sejam transferidas para outro uso, em coisas que são supérfluas. Pelo contrário, se ofenderiam grandemente ao ver que se gastavam em abusos perniciosos, ainda que houvesse pobres a quem dá-los. Mas, deixemos de parte os homens. Esses bens foram dedicados a Cristo, conseqüentemente devem ser administrados segundo seu arbítrio. Em vão, porém, atribuirão a Cristo esta parte assim gasta, que têm dissipado em oposição a seu mandado, ainda que, para falar a verdade, não muito da renda ordinária da Igreja é consumido com esses gastos. Pois nenhum bispado é tão opulento, nenhuma abadia tão excelente, afinal nenhum sacerdócio tão numeroso, nem tão vasto, que bastem para satisfazer à voracidade dos sacerdotes. Com efeito, enquanto querem poupar para si próprios mediante superstição, induzem o povo a que se construam templos, que se erijam imagens, a que se comprem vasos, a que se preparem vestes caras, desviando assim o que era para ser distribuído aos pobres. Assim sendo, neste sorvedouro são tragadas as esmolas de cada dia.
João Calvino
A POMPA E SUNTUOSIDADE DA IGREJA PAPAL CONSTITUEM DETURPAÇÃO, NÃO EXPRESSÃO DA DIGNIDADE DO REINO DE CRISTO
Aqui, porém, usam de mui atraente pretexto, pois dizem que a dignidade da
Igreja não é indecentemente sustentada com esta magnificiência. E alguns de sua
seita se mostram tão impudentes, que ousam alardear escancaradamente que afinal
se cumprem aqueles vaticínios com que os antigos profetas descrevem o esplendor
do reino de Cristo, quando se contempla esse régio aparato na ordem sacerdotal.
Não sem razão, dizem eles, Deus prometeu essas coisas a sua Igreja: “Virão reis,
adorarão diante de ti, trazer-te-ão oferendas” [Sl 72.10, 11]; “Levanta-te, levanta-te,
veste-te de tua força, ó Sião, veste-te das vestimentas de tua glória, ó Jerusalém” [Is
52.1]; “Todos de Sabá virão, trazendo ouro e incenso e louvor anunciando ao Senhor;
todo o gado de Cedar será arrebanhado para ti” [Is 60.6, 7].
Se me detivesse a refutar este descaramento, temo que me taxariam de inconsiderado.
Portanto, não vale a pena desperdiçar palavras inconsideradamente. Entretanto,
pergunto: Se algum judeu usasse mal esses testemunhos da Escritura, que
solução haveriam de dar? Certamente repreenderiam sua obtusidade, porque estaria
transferindo à carne e ao mundo coisas que foram ditas espiritualmente acerca do
reino espiritual de Cristo. Pois sabemos que os profetas não nos delinearam a glória celeste de Deus, a qual deve luzir na Igreja, sob a imagem de coisas terrenas. Ora,
destas bênçãos que suas palavras expressam nunca proliferou menos a Igreja do que
sob os apóstolos. E no entanto todos confessam que a pujança do reino de Cristo
floresceu então ao máximo.
Portanto, que significam essas afirmações? Tudo quanto, em qualquer parte, é
precioso, sublime, preclaro, importa que se sujeite ao Senhor. O que, porém, se diz
expressamente acerca de reis – que submeteram seus cetros a Cristo, que lançaram
suas coroas aos pés dele, que consagraram suas riquezas à Igreja –, quando isto se
cumpriu mais plenamente do que quando o imperador Teodósio, tirando seu manto
de púrpura, depondo suas insígnias do poder, como qualquer um dentre a plebe se
submeteu a solene penitência diante de Deus e da Igreja, do que quando ele próprio
e outros príncipes piedosos semelhantes dedicaram seus esforços e seus cuidados a
conservar-se pura na Igreja a doutrina, a suster e a proteger a integridade dos mestres?
Mas, de fato, quanto os sacerdotes não excederam então em riquezas supérfluas,
bastaria só aquela expressão do Sínodo de Aquiléia, a que Ambrósio declara:
Gloriosa é a pobreza nos sacerdotes do Senhor. De fato os bispos tinham, então,
algumas riquezas mercê das quais podiam exibir ostensivamente a honra da Igreja,
se houvessem pensado serem estes os verdadeiros ornamentos da Igreja. Entretanto,
como nada reconhecessem ser mais oposto ao ofício de pastores que esplender e
enfatuar-se nos regalos das mesas, na pompa das vestes, no grande séquito de fâmulos,
nos palácios magníficos, seguiam e cultivavam a humildade e a modéstia, mais
ainda, a própria pobreza que Cristo consagrou entre seus ministros.
João Calvino
João Calvino
OS FUNDOS DESTINADOS À ASSISTÊNCIA AOS POBRES SÃO APROPRIADOS SACRILEGAMENTE PELO CLERO PARA SEUS FINS PESSOAIS
Aqui, todas essas normas antigas que expusemos foram não apenas conturbadas,
mas até inteiramente mudadas ou abolidas. A maior parte dos fundos e bens
destináveis aos pobres os bispos e presbíteros urbanos, que se tornaram ricos com
essa presa, se transformaram em canônicos, a açambarcaram entre si. Entretanto,
que a partilha foi tumultuária disto se faz evidente: até hoje estão a litigar quanto
aos respectivos limites. O que quer que seja, com esta decisão se proveu que nem um óbolo sequer, de todos os bens da Igreja, fosse consignado aos pobres, de quem
pelo menos a metade deveria destinar-se. Ora, os cânones lhes atribuem expressamente
a quarta parte; outra quarta parte, porém, destinam aos bispos, para que a
gastem em hospitalidade e outros deveres de benevolência. Deixo aos clérigos a
decisão quanto ao que deveriam fazer com sua quarta parte, e em que deveriam
empregá-la,66 pois já foi demonstrado sobejamente que o restante, que se destinava
a templos, edifícios e outros gastos, deve estar à disposição dos pobres caso seja
necessário.
Pergunto: se tivessem no coração uma só centelha de temor de Deus, porventura
suportariam o senso de que tudo quanto comem e de que são vestidos provém de
furto, mais ainda, de sacrilégio? No entanto, visto que se deixam mover bem pouco
pelo juízo de Deus, deveriam ao menos refletir que aqueles a quem querem persuadir
de que em sua Igreja existem ordens tão belas e dispostas, como costumam
alardear, são homens dotados de senso e razão. Respondam-me de forma bem sucinta
se porventura o diaconato seja a liberdade de roubar e assaltar. Caso neguem isto,
serão ainda compelidos a confessar, quando entre eles toda a administração dos
bens eclesiásticos foi abertamente convertida em sacrílega pilhagem: não existe
nenhum diaconato remanescente.
João Calvino
João Calvino
O DIACONATO SUBSISTENTE NA ORDEM SACERDOTAL PAPISTA É UMA TOTAL DETURPAÇÃO DO OFÍCIO INSTITUÍDO PELOS APÓSTOLOS
Então venham à frente os diáconos com aquela mui santa distribuição que têm
dos bens eclesiásticos. Ainda que eles não ordenem seus diáconos para isto; pois
não os incumbem de outra coisa senão que ministrem diante do altar, recitem ou
cantem o evangelho e façam não sei que ninharias afins. Nada de esmolas, nada de
cuidado dos pobres, nada de toda aquela função que outrora desempenhavam. Estou
falando da instituição propriamente dita, porquanto, se olharmos para o que fazem,
na realidade o que exercem não é um ofício, mas apenas um passo para o presbiterato.
Em uma só coisa representam fútil simulacro da antigüidade aqueles que na
missa têm o lugar de diácono, porque recebem as oblações antes da consagração.
Mas o costume antigo era que, antes da comunhão da Ceia, os fiéis se osculavam
mutuamente e ofereciam esmolas no altar. Desta maneira davam testemunho de seu
amor, primeiramente pelo sinal, e em seguida pela obra.65 O diácono, que era o
econômo dos pobres, recebia o que estava sendo dado a fim de o distribuir. Agora,
com essas esmolas não chegam mais aos pobres do que se fossem atiradas ao mar.
Portanto, zombam da Igreja com este vão pretexto de diaconato. Certamente não há
nele nada da instituição apostólica, nem têm nenhuma semelhança com a observância
antiga.
Quanto à dispensação propriamente dita de bens, transferiram para outros lugares,
e de tal modo dispuseram, que não se pode imaginar nada mais fora de ordem.
Ora, da mesma forma que salteadores, uma vez cortados os pescoços dos homens
dividem entre si a presa, assim estes, após extinta a luz da Palavra de Deus, como
que cortada a garganta da Igreja, pensaram ter sido exposto à presa e à rapina tudo
quanto fora consagrado a usos santos. Assim sendo, feita a divisão, cada um arrebatou
para si quanto pôde.
João Calvino
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