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terça-feira, 27 de novembro de 2018

COMO VEIO A SÉ ROMANA A GRANJEAR PODER SOBRE AS DEMAIS IGREJAS

Volvo-me agora à jurisdição que o pontífice romano assevera ter, insofismavelmente, sobre todas as igrejas. Sei muito bem quão grandes foram outrora os embates acerca desta jurisdição, pois não houve nenhum tempo em que a sé romana não cobiçasse a soberania sobre as demais igrejas. E não será intempestivo investigar neste lugar de que modos ela então, pouco a pouco, emergiu a algum poder. Ainda não estou falando deste infinito domínio que não há muito tempo arrebatou para si, pois prorrogamos isso para seu devido lugar. Aqui, porém, é preciso indicar sucintamente como desde muito e de quais razões se extrapolou, para que assumisse para si certo direito sobre as demais igrejas. Como as igrejas orientais estivessem divididas e conturbadas pelas facções dos arianos, sob os imperadores Constâncio e Constante, filhos de Constantino, o Grande, e Atanásio fosse expulso de sua sé, ali o principal defensor da fé ortodoxa, calamidade desta ordem obrigou-o a vir para Roma, para que, pela autoridade da sé romana, de qualquer modo não só reprimisse a fúria de seus inimigos, mas também firmasse os piedosos a padecerem duras contingências. Foi ele honorificamente recebido por Júlio, então o bispo de Roma, e conseguiu que os bispos ocidentais lhe empreendessem a defesa da causa. Portanto, como os pios carecessem grandemente de apoio externo, mas na igreja romana visualizassem ótima ajuda, de bom grado lhe deferiram o máximo de autoridade que podiam. Entretanto, tudo isso outra coisa não era senão que a comunhão lhe fosse de grande importância, ignominioso, porém, fosse considerado ser por ela excomungado. Mais tarde, eles mesmos adicionaram em grande medida elementos maus e réprobos a essa hegemonia; pois, para que se evadissem a legítimos juízos, se acolhiam a este asilo. Assim sendo, se algum presbítero fosse condenado por seu bispo, se algum bispo o fora pelo sínodo de sua província, apelavam, imediatamente, para Roma. E os bispos romanos recebiam esses apelos mais avidamente do que era próprio, porquanto parecia ser expressão de extraordinário poder serem eles interpostos assim, ampla e latamente, nos afazeres. Assim, como Êutiques fosse condenado por Flaviano, patriarca de Constantinopla, ele se queixou junto a Leão, bispo de Roma, de que lhe havia sido feita injustiça. Esse, nada lento, não menos temerária que prontamente, empreendeu o patrocínio de uma causa má, investiu pesadamente contra Flaviano, como se, sem conhecimento de causa, houvesse condenado a um homem inocente; e com esta sua ambição fez com que, por um espaço de tempo, se firmasse a impiedade eutiquiana. Isto é patente haver ocorrido freqüentemente na África, uma vez que, tão logo algum biltre fora sujeito a juízo ordinário, o mesmo voava para Roma, impingia os seus de muitas calúnias, mas a sé romana estava sempre preparada para interpor-se. Essa impudência compeliu os bispos africanos a decretarem que ninguém, sob pena de excomunhão, apelasse para além-mar.

João Calvino