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terça-feira, 6 de novembro de 2018

TAMPOUCO O PRIMADO EXCLUSIVO A PEDRO CONFERE O PODER DAS CHAVES

Já adverti quão indignamente torcem aquelas passagens que fazem menção de ligar e desligar, por um lado; por outro, se haverá de expor mais profusamente pouco mais adiante. Por ora faz-se necessário ver apenas o que eles extraem daquela celebrada resposta de Cristo a Pedro. Ele promete dar-lhe as chaves do reino dos céus. Disse que tudo quanto ligasse na terra seria ligado nos céus [Mt 16.19]. Se entre nós houver acordo quanto ao termo chaves e ao modo de ligar, então imediatamente toda disputa cessará. Ora, mesmo o papa de bom grado deixará de parte o encargo imposto aos apóstolos, o qual, pleno de labor e enfado, lhe despojaria de seus prazeres, sem qualquer lucro. Uma vez que pela doutrina do evangelho os céus nos são abertos, ela é adornada de elegante metáfora pelo termo chaves. Os homens já não são ligados e desligados de outro modo, senão enquanto a uns a fé reconcilia com Deus, a outros sua incredulidade mais o comprova. Se o papa assumisse só isto para si, creio que ninguém se deixaria mover de inveja ou do espírito de contenda. Mas, visto que esta sucessão, laboriosa e bem pouco rentável, de maneira alguma sorri para o papa, já daí nasce o princípio de litígio quanto ao que Cristo haja prometido a Pedro. Eu, da própria matéria, concluo que aqui se denota apenas a dignidade do ofício apostólico, a qual não se pode dissociar do ônus envolvido. Ora, se for recebida aquela definição que propus, a qual só se pode rejeitar impudentemente, aqui nada se dá a Pedro que não fosse comum também aos colegas, porque, de outra maneira, não só se faria dano à suas pessoas, mas também claudicaria a própria majestade da doutrina. Em contrário, eles bradam. Indago, porém: que aproveita arremeter-se contra essa rocha? Porque nunca conseguirão que, assim como a pregação de um mesmo evangelho foi imposta a todos os apóstolos, assim também todos eles foram providos em comum do poder de ligar e desligar. Cristo, dizem eles, constituiu a Pedro príncipe de toda a Igreja, quando prometeu que lhe daria as chaves. Com efeito, o que então prometeu a um só, em outro lugar [Mt 18.18; Jo 20.23] confere, e como que à mão entrega, a todos os demais a um só tempo! Se a mesma prerrogativa que se promete a um é outorgada a todos, como um pode ser superior aos demais? Dizem que a preeminência consiste nisto: que ele recebe não só em comum, mas também separadamente, o que aos outros não é dado senão em comum. E se responder com Cipriano e Agostinho, que Cristo fez isso não para que um homem só preferisse aos demais, mas para que assim recomendasse a unidade da Igreja? Pois assim fala Cipriano: “Na pessoa de um só homem o Senhor deu as chaves a todos, para que denotasse a unidade de todos. Conseqüentemente, os demais foram o que Pedro era, dotados com igual participação tanto de honra quanto de poder, mas o ponto de partida faz-se da unidade, para que a Igreja de Cristo se mostre una.”68 Agostinho, porém: “Se em Pedro não estivesse o ministério da Igreja, o Senhor lhe não diria: ‘Dar-te-ei as chaves’, pois se isto foi dito a Pedro, então a Igreja não as tem; entretanto, se a Igreja as tem, quando Pedro recebeu as chaves, representou toda a Igreja.” Em outro lugar: “Todos foram interrogados, mas somente Pedro responde: ‘Tu és o Cristo’; e este lhe diz: ‘Dar-te-ei as chaves’, como se ele só tivesse recebido o poder de ligar e desligar, enquanto ele falou por todos e recebeu comum a todos, sendo, por assim dizer, o representante da unidade. Um recebeu por todos, porque a unidade está em todos.”

João Calvino