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domingo, 15 de julho de 2018

A ILUMINAÇÃO DO ESPÍRITO É A CONDIÇÃO DO BOM ENTENDIMENTO DA VERDADE DE DEUS


Portanto, como foi Platão merecidamente censurado acima, uma vez que imputara à ignorância todos os pecados, assim também se deve repudiar a opinião daqueles que ensinam que em todos os pecados permeiam deliberadamente a maldade e perversidade. Pois sempre que experimentamos a saciedade, com toda nossa boa intenção caímos. De quantas formas de enganos nos é acometida a razão, a tantos erros ela se expõe; contra tantos obstáculos se arremete, em tantos apertos se enredilha, de forma que está mui longe de ser-nos segura direção. Com efeito, Paulo mostra quão nula, em todas as expressões da vida, nos é a razão diante do Senhor, quando nega que somos idôneos de nós mesmos pensarmos algo como provindo de nós [2Co 3.5]. Ele não está falando da vontade ou da sensibilidade, mas nos proíbe também isto: que não pensemos que possa nos vir à mente a possibilidade de podermos fazer o bem.54 Porventura a tal ponto se acha depravada toda diligência, argúcia, entendimento, solicitude, que o homem não pode pensar nada reto, nem mesmo meditar diante do Senhor? Não é de surpreender que a nós, que de mal grado nos deixamos despojar da habilidade da razão, a qual reputamos ser o mais precioso dote, isto pareça demasiado duro. Ao Espírito Santo, porém, que sabe serem vãs todas as especulações dos sábios [1Co 3.20; Sl 94.11], e que declara expressamente que somente má é toda e qualquer imaginação do coração humano [Gn 6.5; 8.21], julga que isso é assim. Se é sempre mau tudo quanto nosso entendimento concebe, cogita, sanciona, empreende, como nos venha à mente sancionar o que é aprazível a Deus, a quem unicamente a santidade e a justiça são aceitas? Daí, é preciso observar que a razão de nossa mente, para onde quer que se volva, é miseravelmente suscetível à futilidade. Davi estava cônscio desse padecimento em relação a si mesmo, quando rogava que lhe fosse concedido entendimento para aprender retamente os preceitos do Senhor [Sl 119.34]. Ora, quem deseja alcançar para si nova compreensão, deixa claro que de modo algum lhe é suficiente à compreensão que possui. Isso não faz apenas uma vez; ao contrário, em apenas um Salmo se repete a mesma deprecação quase umas dez vezes [Sl 119.12, 18, 19, 26, 33, 64, 68, 73, 124, 125, 135, 169]. Com essa repetição, sublinha ele de quão grande necessidade é compelido a assim suplicar. E o que aquele implora só para si, Paulo costuma rogar para as igrejas em comum. “Não cessamos”, diz ele, “de orar por vós e de pedir que sejais cheios do conhecimento de Deus em toda sabedoria e entendimento espiritual, para que andeis dignamente diante de Deus” etc. [Cl 1.9, 10]. Quantas vezes, porém, ele faz disto um benefício de Deus, a saber, que devemos lembrar-nos que ele está, ao mesmo tempo, testificando que isso não está posto na capacidade do homem. Agostinho, porém, a tal ponto reconheceu esta deficiência da razão para compreender as coisas que são de Deus, que julga ser a graça da iluminação não menos necessária às mentes doque aos olhos é a luz do sol. Não contente com isso, acrescenta a retificação de que nós abrimos os olhos para ver a luz, porém os olhos da mente permanecem fechados, a não ser que sejam abertos pelo Senhor.55 Nem ensina a Escritura que são nossas mentes iluminadas em apenas um dia, de sorte que, a partir daí, vejam por si próprias, porquanto o contínuo progresso e crescimento lhes são conferidos, como há pouco fiz menção de Paulo. E isso Davi exprime eloqüentemente com estas palavras: “Busquei-te de todo meu coração, para que não me faças desviar de teus mandamentos” [Sl 119.10]. Ora, ainda que fora regenerado, e por isso houvesse avançado não vulgarmente na verdadeira piedade, no entanto confessa que tem necessidade a cada momento de constante diretriz, para que não declinasse do conhecimento de que foi dotado. E assim, em outro lugar [Sl 51.10], pede que se lhe renove um espírito reto, o qual, por sua culpa, havia perdido, já que a Deus mesmo pertence restituir o que, a nós subtraído por um tempo, nos fora dado inicialmente.


João Calvino