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domingo, 15 de julho de 2018

TAMBÉM DAS PRECES E SÚPLICAS DA BÍBLIA SE VÊ QUE TUDO QUE DE BOM PODEMOS FAZER PROVÉM DE DEUS


Assim também se lêem as preces conservadas dos santos. “Incline-nos o Senhor o coração para consigo”, dizia Salomão [1Rs 8.58], “para que guardemos seus mandamentos.” Ele mostra a contumácia de nosso coração, o qual, por natureza, a não ser que seja quebrantado, exulta na rebeldia contra a lei divina. O mesmo tem-se também no Salmo [119.36]: “Inclina-me o coração para teus testemunhos.” Deve-se, pois, notar sempre a antítese entre a inclinação perversa do coração, mercê da qual é levado à renitência, e esta correção, mediante a qual é compelido à obediência. Pois quando, sentindo que, por um tempo, havia sido privado da graça diretiva, Davi roga a Deus que crie nele um coração puro, renove em suas entranhas um espírito reto [Sl 51.10], porventura não reconhece serem saturadas de impureza todas as partes de seu coração e seu espírito contorcido de tortuosa depravação? Ademais, a pureza que suplica, ao chamá-la criação de Deus, depois de recebida, porventura não lha atribui toda? Se alguém objeta que essa própria prece é evidência de uma disposição pia e santa, a refutação é imediata: por mais que, em certa medida, Davi já se arrependera, não obstante ele está comparando o estado anterior com essa triste ruína que havia experimentado. Portanto, assumindo o papel de um homem alienado de Deus, pede com razão que se lhe dê tudo quanto Deus outorga a seus eleitos na regeneração. E assim, como se fosse um morto, deseja ser criado de novo, para que, de escravo de Satanás, viesse a ser órgão do Espírito Santo. Sem dúvida é surpreendente e portentoso o fremir de nosso orgulho! Nada exige o Senhor mais estritamente do que observarmos mui religiosamente seu sábado, a saber, descansando de nossos labores. E não há nada mais difícil de se conseguir de nós do que nos descartarmos de nossas ocupações para darmos justo lugar às obras de Deus.83 Não fôssemos impedidos por nossa insânia, Cristo nos deu testemunho assaz luminoso de suas graças, para que não fossem malignamente suprimidas. “Eu sou”, diz ele, “a vide, vós os sarmentos; meu Pai é o viticultor. Assim como o sarmento não pode dar fruto de si mesmo, a não ser que permaneça na vide, assim nem vós, a não ser que permaneçais em mim, porque sem mim nada podeis fazer” [Jo 15.1, 4, 5]. Se de nós mesmos não produzimos nenhum fruto, exatamente como um rebento arrancado da terra e privado da umidade não viceja, não é preciso que busquemos mais remotamente qual é a capacidade de nossa natureza para o bem. Tampouco é ambígua esta conclusão: “Sem mim nada podeis fazer” [Jo 15.5]. Não está ele a dizer que somos fracos demais para que sejamos suficientes em nós mesmos; ao contrário, ao reduzir-nos a nada, exclui toda pretensão de qualquer exígua capacidade, por mínima que seja. Se, enxertados em Cristo, damos fruto como uma vide, que tira a energia do reino vegetal, seja da umidade do solo, seja do orvalho celeste, seja do alento do sol, em uma boa obra nada vejo que nos resta, se a Deus conservamos puro o que é seu. Em vão se propõe esta sutileza frívola: a seiva e a potencialidade já estão inclusas no rebento para a produção de frutos, e por isso nem tudo ele tira do solo ou da raiz primária, porquanto confere algo peculiar. Ora, Cristo aqui não tem em mente outra coisa senão que somos madeira seca e imprestável enquanto estamos separados dele; por isso, à parte dele, não há em nós nenhuma capacidade de fazer o bem, assim como diz também em outro lugar: “Toda árvore que meu Pai não tiver plantado será arrancada” [Mt 15.13]. Portanto, na passagem já citada [Fp 2.13], o Apóstolo lhe credita a soma inteira: “Deus”, diz ele, “é quem opera em vós tanto o querer quanto o executar.” A primeira parte de uma boa obra é a vontade; a segunda, o firme empenho em executá-la: Deus é o autor de ambos. Portanto, furtamos ao Senhor, se algo arrogamos para nós, seja na vontade, seja na execução. Se fosse dito que Deus empresta ajuda à vontade fraca, algo nos seria deixado; quando, porém, se diz que ele produz a vontade, então se localiza fora de nós tudo quanto nela há de bom. Ademais, uma vez que até mesmo uma boa vontade é esmagada pelo peso de nossa carne, tanto que não possa soerguer-se, acrescentou que, para superar as dificuldades dessa luta, nos é administrada a constância de empenho para que nos assista até mesmo a execução. Com efeito, nem poderia ser de outro modo consistente o que ensina em outro lugar [1Co 12.6], ou, seja, “é o mesmo Deus que opera tudo em todos”, onde, como anteriormente ensinamos, está compreendido todo o curso da vida espiritual. Razão pela qual Davi, depois de suplicar que lhe fossem manifestos os caminhos de Deus, para que andasse na verdade, adiciona logo em seguida: “Une meu coração para temer teu nome” [Sl 86.11], palavras com as quais deixa claro que mesmo os que são muito bem dispostos estão sujeitos a tantos desvios que facilmente se desvanecem ou escoam, caso não sejam firmados à constância. Razão por que, em outro lugar, depois que orou para que seus passos fossem dirigidos para guardar a palavra de Deus, implora também que força lhe fosse dada para lutar: “Que iniqüidade nenhuma”, diz ele, “domine sobre mim” [Sl 119.133]. Portanto, dessa maneira o Senhor não só inicia a boa obra em nós, mas ainda a consuma, de modo que seja dele o fato de que a vontade concebe o amor do que é reto, que a seu zelo se inclina, que ao esforço de buscá-lo se incita e se move; além disso, que a escolha, o empenho, o esforço não são remissos, ao contrário, avançam até à execução; finalmente, que o homem persiste neles com constância e persevera até o fim.

João Calvino