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domingo, 15 de julho de 2018

PERSEVERANÇA: OBRA EXCLUSIVA DE DEUS, NÃO PRODUTO DO MÉRITO HUMANO


Quanto à perseverança, não deveria restar mais dúvida de que ela deve ser tida por dom gratuito de Deus, não fora o fato de haver prevalecido o perniciosíssimo erro de que esta é dispensada segundo o mérito dos homens, conforme cada um não se mostre ingrato para com a primeira graça. Ora, pois, uma vez que esse erro nasceu daí, a saber, que os homens pensavam estar em nosso arbítrio rejeitar ou aceitar a graça de Deus oferecida, refugada esta opinião, também aquele por si só se esboroa. Contudo, aqui se erra de duas maneiras, a saber: além de ensinarem que nossa gratidão é para com a primeira graça, e seu legítimo uso é remunerado por dons subseqüentes, ainda acrescentam que a graça já não opera em nós sozinha, ao contrário, ela é apenas cooperante. Quanto ao primeiro desses pontos, deve-se sustentar o seguinte: enquanto a seus servos dia a dia os enriquece e de novas dádivas de sua graça os cumula, visto que tem por grata e aceitável a obra que neles começou, neles o Senhor acha o que será acompanhado de maiores graças. E a isto se aplicam estas afirmações: “Ao que tem, dar-se-lhe-á” [Mt 25.29; Lc 19.26]; igualmente: “Muito bem, servo bom, porque foste fiel em umas poucas coisas, sobre muitas te colocarei” [Mt 25.21, 23; Lc 19.17]. Aqui, porém, é preciso precaver-se de duas coisas: que não se diga ou que o legítimo uso da primeira graça é remunerado por graças subseqüentes, como se de sua própria diligência o homem tornasse eficaz a graça de Deus, ou que seja de tal modo julgada a recompensa que deixe de ser tida por graciosa mercê de Deus. Portanto, confesso que os fiéis devem esperar esta bênção de Deus: quanto melhor uso fizerem das graças precedentes, de tanto maiores bênçãos haverão de ser aumentadas a seguir. Todavia, afirmo que esse uso também procede do Senhor, e que esta recompensa provém de sua graciosa benevolência, e que usam perversamente, não menos que desgraçadamente, essa desgastada distinção de graça operante e graça cooperante. É verdade que Agostinho fez uso desta distinção, contudo atenuando-a com uma cômoda definição: Deus executa, cooperando, o que começa, operando; e é a mesma graça, porém muda o nome, conforme o diferente modo do efeito.88 Do quê se segue que ele não está dividindo-a entre Deus e nós, como se do próprio movimento de um e de outro houvesse mútua convergência; ao contrário, está assinalando a multiplicidade da graça. A isto se aplica o que diz em outro lugar: a boa vontade do homem precede as muitas dádivas de Deus, entre as quais está também a própria boa vontade. Do quê se deduz que nada credita à vontade humana que ela mesma possa arrogar para si com propriedade. O que também Paulo declarou expressamente. Ora, depois de haver dito que Deus é quem opera em nós tanto o querer quanto o executar, em seguida acrescentou que o Senhor, de sua boa vontade, faz a ambos [Fp 2.13], significando por esta expressão que sua benignidade é graciosa. A isto, porém, que costumam dizer, ou, seja, que depois que dermos lugar à graça inicial, então nossos esforços cooperam com a graça subseqüente, respondo: Nada reclamo se entendem que, desde quando, uma vez, fomos pelo poder do Senhor subjugados à obediência da justiça, por nós mesmos avançamos e somos inclinados a seguir a ação da graça, pois certíssimo é que onde reina a graça de Deus existe essa prontidão de obedecer. Entretanto, donde procede isso senão que o Espírito de Deus, sempre consistente consigo mesmo, nutre e fortalece a constância da disposição de perseverar na obediência que gerou a princípio? Ao contrário, se são de opinião que o homem possa presumir de si mesmo capacidade para colaborar com a graça de Deus, enganam-se pestilentissimamente.

João Calvino