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terça-feira, 24 de julho de 2018

A RELAÇÃO ESPECIAL DO POVO COM SEU DEUS IMPLÍCITA NAS PALAVRAS: “QUE TE TIREI DA TERRA DO EGITO, DA CASA DA SERVIDÃO”


Segue a rememoração do benefício feito ao povo que deve ser tanto mais poderosa para mover-nos, quanto mais detestável é, até mesmo entre os homens: a mancha da ingratidão. Deus estava, então, relembrando a Israel de um benefício, na verdade recente, benefício, porém, que, memorável para sempre em virtude de sua grandeza mirífica, valesse também para a posteridade. Ademais, é um exemplo assaz apropriado à situação presente, pois o Senhor assinala que por isso estes foram libertados de mísera servidão: que, em submissão e em prontidão de obedecer, adorem ao autor da liberdade. Para que nos mantenha no verdadeiro culto exclusivamente seu, Deus costuma também designar-se por certos epítetos em virtude dos quais ele distingue sua santíssima majestade de todos os ídolos e deuses inventados. Ora, como já disse antes, tal é a propensão que temos para com a fatuidade, associada com a temeridade, que tão logo o nome de Deus é referido, nossa mente não pode deixar de cair em alguma vã invenção. Portanto, visto que Deus quer propiciar remédio a este mal, adorna ele sua divindade de títulos seguros, e dessa forma nos cerca como que de determinadas cercas, para que não vaguemos para cá ou para lá, e desatinadamente inventemos para nós algum Deus novo, se deixado de parte o Deus vivo suscitemos um ídolo em seu lugar. Por esta razão, os profetas, sempre que o querem designar apropriadamente, revestem-no e, por assim dizer, o circunscrevem com estas marcas sob as quais se manifestara ao povo israelita. Pois, quando é chamado “o Deus de Abraão” ou “o Deus de Israel” [Ex 3.6], quando é colocado no templo de Jerusalémentre os querubins [Hc 2.20; Sl 80.1; 99.1; Is 37.16], nem estas e formas semelhantes de falar o ligam a um único lugar, ou a um só povo. Ao contrário, foram enunciadas apenas para que os pensamentos dos piedosos estivessem em harmonia com aquele Deus que, em virtude de seu pacto que firmou com Israel, assim se representou para que de modo algum se permita mudar de padrão como esse. Contudo, permaneça isto estabelecido: faz-se menção do livramento de Israel para que os judeus se consagrem mais corajosamente a Deus, que, por direito, a si os reivindica. Nós, porém, para que não pensemos que isso nada tem a ver conosco, nos convém considerar ser a servidão de Israel no Egito um tipo do cativeiro espiritual em que todos nos vemos retidos, até que, libertados pelo poder de seu braço, o celeste vingador nos traslada para o reino da liberdade. Portanto, da mesma forma que, como quisesse recongregar ao culto de seu nome os israelitas outrora transviados, os livrou da intolerável dominação de faraó, pela qual eram oprimidos, assim àqueles a quem hoje professa ser ele o seu Deus, a todos esses já o livra do mortal poder do Diabo, o que foi tipificado naquela servidão corporal. Assim, pois, não deve haver homem algum, cujo coração não se sinta inflamado ao atentar para a lei, promulgada por aquele que é Rei de reis e supremo Monarca, de quem todas as coisas procedem, e para as quais justamente devem ordenar-se e dirigir-se a seu fim. Ninguém, afirmo, há que não deva ser arrebatado a abraçar o Legislador, à observância de cujos mandamentos é ensinado ter sido escolhido de modo especial; de cuja bondade espera não somente a abundância de todas as coisas boas, mas ainda a glória de uma vida imorta; de cujo admirável poder e misericórdia se sabe muito bem ser libertado das fauces da morte .

João Calvino