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domingo, 15 de julho de 2018

NÃO É SÓ O ENTENDIMENTO QUE É DEFICIENTE, MAS TAMBÉM A VONTADE


Deve examinar-se agora a vontade, na qual revolve principalmente a liberdade de arbítrio, uma vez que se viu antes que a escolha é dela mais do que do intelecto. De princípio, para que não pareça caber algo à retidão da vontade humana, pois que foi ensinado pelos filósofos, e recebido pelo consenso público, que ela tudo aspira ao bem por disposição natural, observemos que não se deve buscar em disposição desse molde o poder do livre-arbítrio, o qual parte mais da inclinação da natureza do que da deliberação da mente. Ora, até mesmo os escolásticos confessam não haver nenhuma operação de livre-arbítrio, a não ser quando a razão se volva para os opostos, com o que entendem que o objeto do apetite tem de estar sujeito à escolha, e que a escolha deve preceder à deliberação que abre caminho para aquela. E, com efeito, se contemplas o que é este desejo natural do bem no homem, verificarás que ele o tem em comum com os animais. Pois na verdade também eles desejam o que lhes é bom, e quando há alguma aparência de bem perceptível a seus sentidos, para aí se volvem. O homem, porém, não escolhe pela razão, em função da excelência de sua natureza imortal quando busca com diligência aquilo que realmente lhe seja bom, nem emprega a razão, nem aplica a mente, à reflexão; ao contrário, sem razão, sem reflexão, segue a inclinação da natureza, como um animal. Portanto, se porventura o homem é levado a buscar o bom por injunção da natureza, isto em nada diz respeito à liberdade de arbítrio. Pelo contrário, requer-se isto: que depois de discenir o bom, o escolha e busque o que escolheu. E para que não haja em alguém alguma dúvida, deve notar-se duplo paralogismo. Ora, aqui, primeiro, o apetite não só é chamado um movimento próprio da vontade, mas ainda uma inclinação natural, como também, segundo, o bom não provém de virtude ou de justiça, mas de condição, como, por exemplo, quando se trata do bem-estar do homem. Afinal, por mais que o homem deseje seguir o que é bom, contudo não o segue; assim como ninguém há a quem a bem-aventurança eterna não seja agradável, à qual, entretanto, ninguém aspira, senão pelo impulso do Espírito. Portanto, uma vez que o desejo natural nos homens de buscar o próprio bemestar nada faz para provar a liberdade de arbítrio, evidentemente não o faz mais do que nos metais e nas pedras a tendência propendente à perfeição de sua essência, atentemos para outros aspectos, se porventura de todo lado a vontade seja tão inteiramente viciada e corrompida, que nada engendre senão o mal, ou se porventura retenha ilesa alguma pequenina porção da qual nasçam bons desejos.

João Calvino