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quinta-feira, 19 de julho de 2018

MUITO MENOS LUCAS 10.30


Entretanto, nada mais freqüentemente se tem nos lábios que a parábola de Cristo acerca do viajor a quem ladrões lançaram semivivo na estrada [Lc 10.30]. Sei que é muito comum a quase todos os escritores fazerem representar sob a figura desse viajora calamidade do gênero humano. Daí suscitam nossos adversários o argumento de que, visto que se diz ter sido ele deixado semivivo, não foi o homem mutilado pelo assalto do pecado e do Diabo a tal ponto que não retenha resquícios remanescentes das primeiras boas coisas. Pois, onde está essa metade da vida, insistem, a não ser que subsistisse alguma porção, seja de reta razão, seja de reta vontade? Em primeiro lugar, o que diriam, se eu negar que há algum lugar para sua alegoria? Ora, não lugar à dúvida de que essa interpretação foi cogitada pelos patrísti cos, à parte do sentido claro da linguagem do Senhor. As alegorias não devem ultrapassar os limites da norma que a Escritura lhes antepõe; pois longe estão de ser suficientes e adequadas para servirem de base a qualquer doutrina. Tampouco me faltam razões com que possa desmantelar toda esta urdidura, pois a Palavra de Deus não deixa ao homem nem sequer meia vida; pelo contrário, ensina que, no que tange à vida bem-aventurada, ele morreu completamente. Paulo, enquanto está falando acerca de nossa redenção, os curados não são semivivos; pelo contrário, uma vez que estávamos mortos, fomos ressuscitados [Ef 2.5]. Não semivivos, mas adormecidos e sepultos, conclama Paulo, os que recebem a iluminação de Cristo [Ef 5.14]; tampouco nosso Senhor diz de outro modo, quando diz ter chegado a hora em que, à sua voz, os mortos ressurgirão [Jo 5.25]. Como poderiam apresentar uma vã alegoria contra tão claros testemunhos da Escritura? Valha, porém, esta alegoria por testemunho indubitável. Entretanto, o que arrancarão de nós? O homem é semivivo, argumentam, logo tem algo preservado. Por certo que sim. Tem ele mente capaz de entendimento, ainda que ela não penetre até à sabedoria celeste e espiritual; tem algum discernimento de honestidade, tem certa noção da divindade, ainda que não alcance ao verdadeiro conhecimento de Deus. Mas, de que valem essas capacidades?Certamente não nos exime desse parecer de Agostinho, aprovado, aliás, pelos sufrágios comuns das escolas, a saber, que foram subtraídos ao homem, após a queda, os dons graciosos de que depende para a salvação; corrompidos e poluídos, porém, foram os dotes naturais. Portanto, indubitável nos é deixada esta verdade, a qual não pode ser abalada por nenhuma máquina de guerra: a mente do homem, tão inteiramente alienada está da justiça de Deus, que nada que não seja ímpio, pervertido, imundo, impuro, infame conceba, deseje, busque fazer, tão completamente besuntado está o coração do veneno do pecado, que nada pode exalar senão o que é totalmente pútrido. Porque, se alguns ostentam, por vezes, a aparência de bom, contudo a mente sempre permanece envolta em hipocrisia e enganosa tortuosidade, a sensibilidade enlaçada de íntima perversidade.

João Calvino