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domingo, 22 de julho de 2018

A LEI NÃO É APENAS FORMAL E EXTERIOR, MAS ESPIRITUAL E INTERIOR. DAÍ RECLAMAR ELA PUREZA DE ESPÍRITO, NÃO MERA OBSERVÂNCIA EXTERNA


Quando, porém, a lei do Senhor nos for exaustivamente explicada, então se confirmará mais convenientemente, afinal, e com mais proveito, o que antes expus acerca de sua função e uso. Antes, porém, que prossigamos a considerar a cada artigo, um a um, vale a pena focalizar previamente apenas aqueles pontos que contribuem a um conhecimento geral dela. De início, seja estabelecido que na lei a vida do homem é amoldada não só à honestidade exterior, mas também à retidão interior e espiritual. Embora ninguém possa negar isto, pouquíssimos, entretanto, disso se apercebem devidamente. Isso acontece porque não atentam para o Legislador, em função de cuja índole se deve aquilatar também a natureza da lei. Se, mediante um decreto, algum rei proíba o fornicar, o matar, o furtar, confesso que não incorrerá em penalidade quem haja apenas concebido na mente o desejo de fornicar, de matar, de furtar, contudo nada destas coisas tem perpetrado. Isto é, visto que a jurisdição do legislador mortal não se estende senão à conduta externa, não se lhe violam as ordenanças senão mediante crimes consumados. Deus, porém, a cujo olho nada foge e que se não atém tanto à aparência externa quanto à pureza de coração, sob a proibição de fornicação, homicídio, furto, proíbe a concupiscência, a ira, o ódio, a cobiça do alheio, o dolo e tudo desse gênero. Ora, uma vez que ele é um legislador espiritual, fala à alma não menos que ao corpo. Mas, o assassínio da alma é a ira e o ódio; o furto, a cobiça má e a avareza; a fornicação, a concupiscência. Também as leis humanas, dirá alguém, atentam para os propósitos e as intenções, não para meros eventos fortuitos. Admito-o, contudo são as intenções que vieram a exteriorizar-se. Ponderam cuidadosamente com que intento se haja cometido todo e qualquer crime; não esquadrinham, porém, os pensamentos secretos. Conseqüentemente, cumpridas terão sido elas quando da transgressão alguém tenha simplesmente retido a mão. Em contrapartida, porém, visto que a lei celestial foi promulgada para nossas almas, necessária lhes é, antes de tudo, a coerção à sua justa observância. Mas, o comum dos homens, ainda quando camufla vigorosamente o desprezo da lei e dispõe os olhos, os pés, as mãos e todas as partes do corpo a certa observância da lei, ao mesmo tempo mantém o coração completamente alienado de toda obediência e julga haver-se desincumbido de suas obrigações, se haja habilidosamente dissimulado aos homens o que faz à vista de Deus. Ouvem: “Não matarás; não adulterarás; não furtarás.” Não desembainham a espada para matança; não ajuntam seus corpos às meretrizes; não lançam as mãos aos bens alheios. Tudo isso está bem até aqui. Mas, de toda a alma, respiram mortes, abrasam-se de volúpia; olham de esguelha para os bens de todos e os devoram de cobiça. Já está, na verdade, ausente o que era o ponto principal da lei. Donde, pergunto, procede tão crassa obtusidade, senão que, deixando de parte o Legislador, acomodam antes os homens a justiça a seu talante?Contra estes, Paulo protesta veementemente, categorizando que “a lei é espiritual” [Rm 7.14], significando com isso que ela não só exige obediência de alma, mente e vontade, mas ainda requerer pureza angelical, pureza que, purgada de todas as sordidezas da carne, de nada saiba senão o espírito.

João Calvino