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quinta-feira, 19 de julho de 2018

O HOMEM NÃO PODE CHEGAR-SE A DEUS SENÃO EM CRISTO, O MEDIADOR


Com estes vaticínios Deus quis que os judeus fossem de tal modo ensinados que, a fim de buscarem livramento, voltassem os olhos diretamente para Cristo. Nem de fato, por mais que houvessem vergonhosamente se degenerado, pôde ser obliterada, no entanto, a lembrança deste princípio geral: que Deus, como prometera a Davi, haveria de ser, pela mão de Cristo, o libertador da Igreja, e que desse modo haveria de finalmente ser firme o pacto gracioso pelo qual Deus havia adotado a seus eleitos. Daqui veio a acontecer, quando, pouco antes de sua morte, Cristo entrou em Jerusalém, que esse cântico vibrasse na boca das crianças: Hosana ao Filho de Davi [Mt 21.9]. Ora, é evidente que o que cantavam tinha sido generalizadamente conhecido e notório, e consagrado pelo uso comum: isto é, na vinda do Redentor lhes restava o único penhor da misericórdia de Deus. Por esta razão, o próprio Cristo ordena aos discípulos que creiam nele, para que pudessem crer em Deus distinta e perfeitamente: “Credes em Deus; também crede em mim”, diz ele [Jo 14.1]. Pois, falando apropriadamente, embora a fé se eleve de Cristo ao Pai, deixa ele claro, no entanto, que, embora se apóie firme em Deus, ela aos poucos se desvanece, a não ser que na condição de Mediador intervenha esse mesmo que a retém em sólida firmeza. De outra sorte, ademais, a majestade de Deus é demasiado elevada para que os mortais possam penetrar até ela, os quais se arrastam sobre a terra como pequeninos vermes. Portanto, assim admito esse popularizado refrão de que Deus é o objeto da fé: que no entanto se faz necessária certa qualificação, porquanto não baldadamente Cristo é chamado a imagem do Deus invisível [Cl 1.15]. Antes, por este designativo somos avisados de que, a menos que Deus se nos defronte em Cristo, ele não pode tornar-se conhecido para nossa salvação. Mas, ainda que entre os judeus existissem os escribas, com seus falsos comentários, cobrindo de trevas o que os profetas haviam ensinado acerca do Redentor, Cristo, contudo tomou por pressuposto, como que recebido do consenso geral, não haver outro remédio nas circunstâncias desesperadas, nem outro modo de livrar a Igreja, senão pela manifestação do Mediador. Não foi, sem dúvida, generalizadamente conhecido como convinha o que Paulo ensina, ou, seja, ser Cristo o fim da lei [Rm 10.4]. Quão verdadeiro e certo é isto, entretanto, patenteia-se claramente da própria Lei e dos Profetas. Não estou ainda a discorrer a respeito da fé, visto que em outra parte haverá um lugar mais oportuno. Deste modo, fique estabelecido aos leitores que o primeiro passo para a piedade é reconhecer que Deus nos é o Pai, para que nos proteja, governe e sustente, até que nos congregue na eterna herança de seu reino. Daqui se faz patente o que dissemos há pouco: à parte de Cristo não subsiste o conhecimento salvífico de Deus, e por isso desde o princípio do mundo ter sido ele posto diante de todos os eleitos, para quem voltassem os olhos e em quem descansassem sua confiança. Nesse sentido escreve Irineu que o Pai, que é Infinito, é finito no Filho, porquanto se acomodou à nossa parva medida, para que não nos absorva a mente na imensidade de sua glória. Não atentando para isto, os fanáticos torcem uma relevante observação a uma ímpia fantasia, como se, a definir da perfeição total, tivessem em Cristo apenas uma parcela da divindade, quando outra coisa não pretendam senão que Deus é apreendido só em Cristo. De todo verdadeira foi sempre esta afirmativa de João: “Quem não tem o Filho, não tem o Pai” [1Jo 2.23]. Ora, ainda que, em tempos idos, muitos se tenham gloriado de adorar o nome supremo, e Artífice do céu e da terra, entretanto uma vez, que não tinham nenhum Mediador, não pôde acontecer que, de fato, degustassem a misericórdia de Deus e fossem assim persuadidos de que ele era seu Pai. Portanto, porque não se atinhamao Cabeça, isto é, a Cristo, evanescido foi entre eles o conhecimento de Deus, donde também resultou que, tombados afinal em crassas e repelentes superstições, pusessem à mostra sua ignorância, tal como hoje os turcos, por mais que proclamem à boca cheia que seu Deus é o Criador do céu e da terra, contudo, já que abominam a Cristo, colocam em lugar do Deus verdadeiro a um ídolo.

João Calvino