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sábado, 14 de julho de 2018

A PRÓPRIA LEI NATURAL ATESTA A CULPABILIDADE HUMANA


Resta a considerar-se aquele terceiro elemento quanto a conhecer-se a regra de dirigir a vida probamente, a que chamamos, com razão, de conhecimento das obras da justiça, onde a mente humana parece ser um tanto mais aguda que nas coisas superiores, pois o Apóstolo atesta [Rm 2.14, 15] que os gentios, que não têm a lei, quando praticam as obras da lei, são por lei para si e mostram a obra da lei escrita em seu coração, dando-lhes testemunho a própria consciência e entre eles os pensamentos acusando-os ou escusando-os diante do tribunal de Deus. Se os gentios têm a justiça da lei da natureza gravada na mente, por certo que não diremos que são inteiramente cegos na maneira de conduzir a vida. E nada é mais generalizado que ser o homem suficientemente assistido, em relação à reta norma da vida, pela lei natural de que o Apóstolo aqui fala. Consideremos, porém, a que propósito este conhecimento da lei foi infundido aos homens. Então, evidenciar-se-á prontamente até onde os conduzirá à meta da razão e da verdade. Se alguém observa sua seqüência, isso se faz claro também à luz das palavras de Paulo. Pouco antes ele dissera que aqueles que sob a lei pecaram, segundo a lei são julgados; os que sem a lei pecaram, sem a lei perecem. Visto que isso poderia parecer absurdo, que os gentios pereçam sem qualquer julgamento pré vio, ele acrescenta imediatamente que sua consciência lhes está no lugar da lei, e por isso lhes é suficiente para justa condenação. Portanto, a finalidade da lei natural é tornar o homem inescusável. E poderíamos defini-la adequadamente dizendo que é um sentimento da consciência mediante o qual discerne entre o bem e o mal o suficiente para que os homens não prextestem ignorância, sendo convencidos por seu próprio testemunho.49 A indulgência do homem para consigo mesmo é que, ao perpetrar o mal, sempre e de bom grado aparta a mente do senso de pecado, até onde permissível. Razão pela qual Platão, no Protágoras, parece ter sido impelido a pensar que não se peca a não ser por ignorância. Isto, sem dúvida, ele o teria dito com propriedade, se a hipocrisia humana tanto avultasse em encobrir os vícios que a mente não se fizesse cônscia de sua culpabilidade diante de Deus. Como, porém, esquivando-se o pecador ao julgamento do bem e do mal em si impresso, é em relação a ele constantemente recambiado, nem se lhe permite sequer assim cerrar as pálpebras que não seja obrigado, queira ou não, a abrir às vezes os olhos, diz-se falsamente que ele peca meramente por ignorância.

João Calvino