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quinta-feira, 19 de julho de 2018

TAMPOUCO O LIVRE-ARBÍTRIO REABILITA AS PROMESSAS DA ESCRITURA


A segunda classe de argumentos se assemelha à anterior. Citam as promessas nas quais o Senhor estabelece um pacto com nossa vontade, que são: “Buscai a bondade e não a maldade, e vivereis” [Am 5.14]; “Se quiserdes e ouvirdes, comereis as boas coisas da terra; se, porém, não quiserdes, a espada vos devorará, porque a boca do Senhor falou” [Is 1.19, 20]. Ainda: “Se removeres tuas abominações de minha face, não serás lançado fora” [Jr 4.1]; “Se deres ouvido à voz do Senhorteu Deus, e fizeres e guardares todos os seus mandamentos, o Senhor te fará mais exaltado que todos os povos da terra” [Dt 28.1]. E outras afins. Julgam que as bênçãosque o Senhor oferece nas promessas nos são delegadas à vontade; se não estivesse em nossa mão e vontade fazê-las ou deixá-las sem efeito seria uma zombaria.” É bem fácil amplificar esta matéria com eloqüentes recriminações, tais como: somos cruelmente enganados pelo Senhor, quando declara que sua benignidade depende de nossa vontade, se nossa vontade não fosse algo de nossa própria alçada; esta liberalidade de Deus será mui eminente, quando ela nos propõe assim suas bênçãos, e não tem qualquer capacidade de usufruí-las; admirável seria a certeza de promessas que dependam de uma coisa impossível, de sorte que nunca se cumpram. Acerca das promessas desta espécie que têm uma condição anexa, falaremos em outro lugar, de modo que fique evidente que nada há de absurdo em seu impossível cumprimento.
No que respeita a esta consideração, nego que Deus nos engane de forma desumana, quando a nós, que sabe sermos de todo desprovidos de capacidade para fazêlo, nos convida a merecer suas bênçãos. Mas uma vez que as promessas são oferecidas igualmente a fiéis e a ímpios, sua aplicação se refere a ambos. Da mesma forma que, mediante os preceitos, Deus punge a consciência dos ímpios, para que não se deliciem nos pecados de forma tão deliciosa, sem nenhuma lembrança de seus juízos, assim nas promessas lhes faz de certo modo testificar quão indignos são de sua benignidade. Pois, quem haja de negar que é mui justo e próprio que o Senhor cumule de bênçãos aqueles de quem é honrado, mas, na medida de sua severidade, castigue aos que desprezam sua majestade? Portanto, Deus age retamente e em ordem quando aos ímpios agrilhoados pelas peias do pecado, nas promessas enuncia esta lei: que finalmente receberão então suas bênçãos, caso se apartem da depravação; ou, só por isto: que compreendam ser com razão excluídos daquelas bênçãos que se devem aos verdadeiros adoradores de Deus. Por outro lado, porque diligencia de todos os modos estimular os fiéis a que implorem sua graça, de maneira alguma será inconsistente se o que mostramos em relação a eles operar com muito fruto mediante os preceitos, isso também tente por meio das promessas. Ensinados pelos preceitos acerca da vontade de Deus, somos advertidos de nossa miséria, nós que, de todo o coração, dela tanto discrepamos. Ao mesmo tempo, somos instigados a invocar-lhe o Espírito, por quem somos dirigidos pelo reto caminho. No entanto, uma vez que nossa displicência não é suficientemente acicatada pelos preceitos, acrescentam-se as promessas para que, por um certo dulçor, a seu amor nos aliciam. Mas, de quanto maior desejo de justiça somos possuídos, tanto mais fervorosos nos tornamos em buscar a graça de Deus. Eis como, por estas injunções, “se quiserdes”, “se ouvirdes”, o Senhor não nos atribui a livre capacidade de querer ou ouvir, nem ainda zomba de nós em razão de nossa falta de poder.

João Calvino