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quinta-feira, 19 de julho de 2018

MESMO NO ANTIGO TESTAMENTO A FÉ SALVÍFICA SE POLARIZA EM CRISTO, O MEDIADOR


E, em conseqüência, Deus nunca se mostrou propício ao povo antigo, nem jamais lhe conferiu a esperança da graça, sem o Mediador. Deixo de parte os sacrifícios da lei, mercê dos quais os fiéis foram clara e abertamente ensinados que não se deve buscar a salvação em outro lugar senão unicamente na Expiação, a qual foi consumada somente em Cristo. Apenas isto reitero: o estado bem-aventurado e feliz da Igreja foi sempre embasado na pessoa de Cristo.
Ora, embora Deus tenha abrangido a toda a descendência de Abraão em sua aliança [Gn 17.4], contudo Paulo arrazoa judiciosamente ser propriamente Cristo aquela semente na qual deveriam ser abençoados todos os povos [Gl 3.14], quando sabemos que nem todos que dele foram gerados segundo a carne foram contados em sua linhagem [G1 3.16]. Pois, para não falar a respeito de Ismael e de outros, como aconteceu que dos dois filhos de Isaque, a saber, Esaú e Jacó, irmãos gêmeos, quando ainda estavam juntos no ventre materno, um fosse escolhido, e rejeitado fosse o outro? De fato, como veio a acontecer que, rejeitado o primogênito, só ao mais jovem foi retida a posição?Donde ocorre também que a maior parte fosse deserdada? Está patente, portanto, em uma única cabeça foi primordialmente computada a semente de Abraão, nem foi manifesta a salvação prometida, até que essa semente viesse a Cristo, cujo ofício é ajuntar as coisas que foram dispersas. Portanto, da graça do Mediador dependia a adoção original do povo eleito. O que, embora em Moisés ainda não se exprimisse em termos claros, contudo se faz bastante patente ter sido geralmente conhecido de todos os piedosos. Ora, antes que se houvesse estabelecido rei sobre o povo, discorrendo a respeito da felicidade dos piedosos, já assim se pronuncia Ana, mãe de Samuel, em seu cântico: “Deus dará força a seu rei e exaltará o poder de seu Messias” [1Sm 2.10], palavras pelas quais reconhece que Deus haverá de abençoar sua Igreja. Ao que corrobora também a profecia que se acrescenta pouco depois: “Diante de meu Cristo andará o sacerdote a quem haverei de constituir” [1Sm 2.35]. Nem de fato há dúvida de que o Pai celeste quisesse que se contemple em Davi e em seus pósteros a imagem viva de Cristo. Por isso, desejando exortar os piedosos ao temor de Deus, Davi manda beijar ao Filho [Sl 2.12], ao que de fato responde esta declaração do evangelho: “Quem não honra ao Filho, não honra ao Pai” [Jo 5.23]. E assim, embora pela defecção das dez tribos o reino sofresse colapso, entretanto foi de conveniência manter-se firme o pacto que Deus havia estabelecido com Davi e seus sucessores, justamente como também falou através dos profetas: “Não cindirei completamente o reino, por causa de meu servo Davi e por causa de Jerusalém, que escolhi, porém a teu filho restará uma tribo” [1Rs 11.13, 32], onde se repete o mesmo uma segunda e terceira vezes. Acrescenta-se, ainda, explicitamente: “Afligirei a descendência de Davi, contudo não por todos os dias” [1Rs 11.39]. Certo decurso de tempo depois disto foi dito: “Por causa de Davi, seu servo, Deus deu uma lâmpada em Jerusalém, de sorte que lhe suscitasse um filho e guardasse Jerusalém salva” [1Rs 15.4]. Quando já as coisas vergavam à ruína, foi dito novamente: “Deus não quis desmantelar a Judá, por causa de Davi, seu servo, porquanto falara que lhe haveria de dar uma lâmpada a seus filhos para sempre” [2Rs 8.19]. A isso se reduz a suma: preteridos todos os outros, somente Davi foi escolhido, em quem residisse o beneplácito de Deus, tal como se diz em outro lugar: “Rejeitou o tabernáculo de Silo, e o tabernáculo de José, e não escolheu a tribo de Efraim” [Sl 78.60, 67], “mas escolheu a tribo de Judá, ao monte Sião a que amou” [Sl 78.68]; escolheu a seu servo Davi para que apascentasse a Jacó, seu povo, sua herança, Israel” [Sl 78.70, 71]. Em conclusão: Deus assim quis preservar sua Igreja que daquele Cabeça dependessem sua incolumidade e estabilidade. E por isso Davi exclama: “O Senhor é a força de seu povo, o poder das salvações de seu Cristo” [Sl 28.8], e imediatamente acrescenta a petição: “Guarda teu povo e bendiz tua herança” [Sl 28.9], significando que a condição da Igreja foi unida por nexo indissolúvel com o senhorio de Cristo. No mesmo sentido, em outro lugar: “Salva, Senhor; ouça-nos o rei no dia em que clamarmos” [Sl 20.9]. Com estas palavras ensina abertamente que os fiéis haverão de refugiar-se no socorro de Deus, não com outra confiança, senão porque estavam para abrigar-se debaixo da proteção do Rei, o que se colige de um outro Salmo: “Salva, Senhor bendito, aquele que vem em nome do Senhor” [Sl 118.25, 26], onde se evidencia sobejamente serem os fiéis recambiados a Cristo para que esperem vir a ser salvos pela mão de Deus. Ao mesmo contempla outra petição, onde a Igreja toda implora a misericórdia de Deus: “Seja tua mão sobre o homem de tua destra, sobre o filho do homem a quem conservaste [ou preparaste] para ti” [Sl 80.17]. Ora, ainda que o autor do Salmo deplore a dispersão de todo o povo, contudo suplica-lhe fervidamente a restauração no único Cabeça. Quando, ademais, o povo foi conduzido ao exílio, devastada a terra e as coisas aparentemente perdidas, Jeremias chora a ruína da Igreja, lamenta principalmente que, pela destruição do reino, a esperança foi cortada aos fiéis. “Cristo”, diz ele, “o alento de nossa boca, foi apanhado cativo em nossos pecados, aquele a quem dissemos: À tua sombra viveremos entre os povos” [Lm 4.20]. Uma vez que Deus não pode ser propício ao gênero humano à parte do Mediador, disto já se faz bastante claro que, sob a lei, aos santos pais Cristo sempre lhes fora posto diante dos olho, em quem pudessem polarizar a fé.

João Calvino