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domingo, 19 de agosto de 2018

A FÉ É OPERANTE, AINDA QUE NÃO EFICAZ NEM ABSOLUTA, ATÉ MESMO NOS RÉPROBOS

Sei que a alguns parece duro de aceitar quando se atribui fé aos réprobos, visto que Paulo a declara ser fruto da eleição; essa dificuldade, no entanto, se soluciona facilmente, porquanto, ainda que os réprobos não sejam iluminados à fé, nem sintam verdadeiramente a eficácia do evangelho, a não ser aqueles que foram preordenados para a salvação, contudo a experiência mostra que os réprobos são às vezes afetados por sentimento quase semelhante ao dos eleitos, de sorte que, em seu próprio julgamento, de fato não diferem em coisa alguma dos eleitos. Daí, nada há de absurdo que pelo Apóstolo lhes seja atribuído o deguste dos dons celestiais [Hb 8.4-6], e uma fé temporária por Cristo [Lc 8.13]. Não que percebam solidamente o poder da graça espiritual e a segura luz da fé, mas porque o Senhor, para que os torne ainda mais convictos e inescusáveis, se lhes insinua na mente, até onde possam degustar a bondade sem o Espírito de adoção. Se, pois, alguém objeta que aos fiéis não se deixa coisa alguma com que estejam seguros e nutram a certeza de sua adoção, respondo que, embora seja grande a semelhança e afinidade entre os eleitos de Deus e os que são dotados por algum tempo de fé transitória, contudo somente nos eleitos viceja aquela confiança que Paulo celebra, de modo que clamem em alta voz: Abba, Pai [Rm 8.15; Gl 4.6]. Portanto, assim como somente aos eleitos Deus regenera para sempre com uma semente incorruptível [1Pe 1.23], de sorte que jamais pereça a semente de vida implantada em seu coração, assim também neles sela solidamente a graça de sua adoção, para que ela seja estável e confirmada. Entretanto, isto de modo algum impede que essa operação inferior do Espírito tenha seu curso até mesmo nos réprobos. Não obstante isto, os fiéis são ensinados a examinar-se a si próprios cuidadosa e humildemente, para que a confiança da carne não se insinue sorrateira em lugar da certeza da fé. Acrescenta-se ainda que os réprobos nunca percebem um senso da graça senão confuso, de sorte que apreendem antes uma sombra em vez da substância; é por isso que o Espírito, propriamente falando, sela a remissão dos pecados somente nos eleitos, de modo que a apliquem para seu proveito mediante fé especial. Não obstante, com razão se diz que os réprobos crêem que Deus lhes é propício, porquanto aceitam o dom da reconciliação, ainda que confusamente, e não de forma bem distinta. Não que sejam participantes com os filhos de Deus da mesma fé ou regeneração, mas porque, sob a capa da hipocrisia, com eles parecem ter um princípio comum de fé. Tampouco nego que Deus lhes ilumine a mente até o ponto de reconhecerem sua graça, mas, do testemunho especial que outorga a seus eleitos, de tal modo distingue esse sentimento, que não chegam a desfrutar de sólido efeito e fruição. Pois não se lhes mostra por isso propício, de tal modo que, verdadeiramente arrebatados da morte, os toma em sua guarda, mas apenas lhes manifesta presente misericórdia. Não obstante, somente aos eleitos digna da raiz viva da fé, para que perseverem até o fim [Mt 24.13]. Dilui-se assim essa objeção: se Deus exibe realmente sua graça nos réprobos, isto está estabelecido para sempre, porque nada impede que Deus ilumine a alguns com o senso de sua presente graça, senso que mais tarde se desvanece.

João Calvino