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segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O ABSURDO DA TESE DE MARCIONITAS E MANIQUEUS EM SUA NEGAÇÃO DA REAL HUMANIDADE DE CRISTO


Com efeito, eles torcem mui ineptamente as referências que alegam em confirmação de seu erro. Tampouco conseguem alguma coisa com as frívolas sutilezas com que tentam diluir os argumentos que já mencionei de nossa parte. Marcião imagina que Cristo se revestiu de um fantasma em vez de um corpo; por isso, em outro lugar, se diz que foi “feito à semelhança do homem” e “achado em figura de homem” [Fp 2.7-8]. Ele, porém, leva bem poucoem conta o que pretende Paulo aí. Pois ele aí não quer ensinar que natureza de corpo Cristo tomou para si, mas, embora pudesse de direito exibir sua deidade, nada ostentou em sisenão o que era próprio do homem abjeto e desprezado. Ora, para que mediante seu exemplo nos exorte à submissão, mostra que, embora fosse Deus e pudesse fazer sua glória prontamente manifesta ao mundo, contudo abriu mão de seu direito e esvaziou-se a si mesmo espontaneamente, porquanto, de fato, se revestiu da imagem de servo, e contente com essa humildade sofreu através do véu da carne que velava sua Deidade [Fp 2.5- 7]. Na verdade, Paulo aqui não está ensinando que Cristo era no tocante à sua substância, mas como ele se conduziu. Além do mais, de todo o contexto facilmente se depreende que Cristo se esvaziou numa verdadeira natureza de homem. Ora, que quer isto dizer: “foi achado em figura como um homem” [Fp 2.8], senão que por um tempo a glória divina não resplandeceu, mas, em uma condição vil e abjeta, apenas se manifestou a forma humana? Aliás, nem de outra sorte procederia essa afirmação de Pedro, ou, seja: “morto na carne, vivificado no Espírito” [1Pe 3.18], a não ser que o Filho de Deus fosse “fraco” numa natureza de homem. Paulo explica issomais claramente, asseverando que Cristo sofreu em razão da fraqueza da carne [2Co 13.4]. E a isso se lhe estende a exaltação: afirma-se expressamente haver Cristo alcançado nova glória depois que a si mesmo se esvaziou, o que não se quadraria convenientemente, senão a um homem dotado de carne e alma. Mani forja um corpo etéreo, pelo fato de Cristo chamar-se “o Segundo Adão, vindo do céu, é celeste” [1Co 15.47]. Mas, o Apóstolo nem mesmo está tratando aí da essência celestial do corpo de Cristo, mas do poder espiritual que, derramado por Cristo, nos vivifica. Desse modo, como já vimos, Pedro e Paulo o distinguem de sua carne. Antes, pelo contrário, desta passagem se firma enfaticamente a doutrina referente à carne de Cristo que vigora entre os ortodoxos. Pois, a não ser que Cristo tivesse conosco uma só natureza corporal, vão seria o arrazoado que Paulo desenvolve com tanta veemência: “Se Cristo ressuscitou, nós também haveremos de ressuscitar; se nós não ressuscitamos, tampouco Cristo ressuscitou” [1Co 15.13-17]. Quaisquer que sejam as sutilezas com que tentem safar-se, quer os maniqueus antigos, quer seus discípulos recentes, não terão como desvencilhar-se. Absurda é a evasiva que sutilmente aventam: que Cristo é chamado Filho do Homem, porque foi prometido aos homens, visto ser evidente que, no modo hebraico de falar, denomina-se filho do homem ao homem como tal. Cristo, com efeito, reteve, não duvidosamente, essa locução de sua própria língua. Que também se haja de entender por filhos de Adão, deve estar além de controvérsia. E, para que não avancemos tanto, será amplamente suficiente a referência do Salmo oitavo, o qual os apóstolos aplicam a Cristo: “Que é o homem, que dele te lembres, ou o filho do homem, que o visites?” [Sl 8.4; Hb 2.6]. Por esta figura se exprime a verdadeira humanidade de Cristo, porque, embora não fosse imediatamente gerado de um pai modal, sua origem, contudo, fluiu de Adão. Aliás, tampouco de outra sorte procederia o que já citamos: Cristo veio a ser participante da carne e do sangue, para que a si agregasse filhos para a obediência de Deus [Hb 2.14], palavras com que Cristo se declara abertamente companheiro e participante conosco da mesma natureza. Querendo dizer com isto: “de um só procederamo autor da santidade e os que são santificados” [Hb 2.11a]. Ora, que isto se refere à comunhão de natureza, evidencia-se à luz do contexto, pois acrescenta em seguida: “Por isso não se envergonha de chamá-los irmãos” [Hb 2.11b]. Pois, se dissesse antes que os fiéis procedem de Deus, que razão haveria para envergonhar-se de tão grande dignidade? Mas, porque, por sua imensa graça, Cristo se associa aos sórdidos e ignóbeis, por isso se diz que ele não se envergonha.
Em vão, porém, objetam, dizendo que, deste modo, os ímpios haverão de ser irmãos de Cristo, porquanto sabemos que os filhos de Deus não são os que nascem da carne e do sangue [Jo 1.13], mas do Espírito, mediante a fé. Portanto, a carne sozinha não faz a conjunção fraterna. Mas, ainda que só aos fiéis atribui o Apóstolo esta honra, que são de uma só natureza com Cristo, não se segue, entretanto, que da mesma fonte, segundo a carne, não nasçam os incrédulos. Da mesma forma, onde dizemos que Cristo se fez homem para que nos fizesse filhos de Deus, esta expressão não se estende a todos e quaisquer indivíduos, porquanto a fé se interpõe como medianeira, a qual nos enxerta espiritualmente no corpo de Cristo. Nesciamente, promovem eles contenda também em relação ao termo primogênito. Alegam que Cristo deveria ter nascido de Adão imediatamente, de início, para que “fosse o primogênito entre irmãos” [Rm 8.29]. Ora, primogenitura aqui se refere não à idade, mas ao grau de honra e eminência de poder. Tampouco tem mais plausibilidade a observação de que Cristo assumiu a natureza do homem, não dos anjos [Hb 2.16], visto haver recebido o gênero humano em sua graça. Pois, para exaltar a honra com que Cristo nos dignou, o Apóstolo nos compara aos anjos que, neste aspecto, foram relegados a segundo plano. E se cuidadosamente for pesado o testemunho de Moisés, no qual diz que a semente da mulher haveria de esmagar a cabeça da serpente [Gn 3.15], se porá termo final a toda a controvérsia. Pois aí a referência não é só a Cristo, mas a todo o gênero humano. Visto que a vitória nos teria que ser adquirida por Cristo, Deus proclama, em termos gerais, que a linhagem da mulher haveria de prevalecer sobre o Diabo. Donde se segue que Cristo foi gerado do gênero humano, pois o desígnio de Deus era consolar e dar esperança a Eva, a quem fala, para que ela não sucumbisse à tristeza.

João Calvino