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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

REFUTAÇÃO DAS OBJEÇÕES SUSCITADAS CONTRA A POSIÇÃO DE CALVINO QUANTO AO REALISMO DOS SOFRIMENTOS DE CRISTO


Aqui, na verdade, certos embusteiros, indoutos, contudo impulsionados por maldade mais do que por ignorância, bradam que estou fazendo atroz injustiça a Cristo, visto que teria sido mui longe de congruente que ele temesse quanto à salvação de sua alma. Em seguida, mais acerbamente, agitam a cavilação de que atribuo ao Filho de Deus desespero que é contrário à fé. Perversamente, esses biltres suscitam controvérsia, em primeiro plano, quanto ao medo e pavor de Cristo, que os evangelistas proclamam tão ostensivamente. Ora, antes que lhe chegasse o momento da morte, ele “foi conturbado em espírito” [Jo 13.21] e tomado de angústia; no próprio encontro com a morte, de fato começou a apavorar-se ainda mais intensamente. Se dizem que foi simples simulação, essa é uma evasiva assaz nauseabunda. Confiantemente, portanto, como corretamente ensina Ambrósio, a não ser que nos envergonhemos da cruz, importa-nos confessar a consternação de Cristo. E, na verdade, a menos que também sua alma fosse participante do castigo, teria Cristo sido Redentor apenas dos corpos. Mas, era-lhe indispensável lutar para que reerguesse os que jaziam prostrados. E daí dele não se detrai absolutamente nada à celeste glória que, neste aspecto, resplandece sua bondade, nunca é suficientemente louvada: que não lhe pareceu ser árduo tomar sobre si nossas mazelas. Donde também esse consolo de ansiedades e aflições que o Apóstolo nos propõe: que este Mediador sofreu nossas mazelas para que viesse a ser mais predisposto a socorrernos a nós míseros sofredores [Hb 4.15]. Insistemque indignamente se atribui a Cristo o que é por si só poluível. Como se, na verdade, mais sabedoria tivessem esses que o Espírito de Deus, que concilia, a um tempo, estas duas coisas: que Cristo em tudo foi tentado como nós o somos, e contudo sem pecado [Hb 4.15]. Não há, portanto, por que nos espante a fraqueza de Cristo, para que se sujeitasse à mesma não foi coagido por violência ou necessidade; ao contrário, foi induzido por puro amor a nós e por sua misericórdia. Tudo quanto, porém, de livre vontade sofreu por nós nada lhe denigre o poder. Mas, em um ponto esses detratores se enganam, a saber, que não reconhecem em Cristo uma fraqueza pura e isenta de toda mancha e estigma, já que ele se conteve dentro dos limites da obediência. Ora, visto que na depravação de nossa natureza, na qual, por turbulento impulso, todas as emoções excedem a medida, não se pode ver moderação, com esta medidamedem erradamente o Filho de Deus. Como, porém, ele fosse impoluto, em todas as suas emoções vigorou moderação que lhes coibisse o excesso. Donde nos pôde ele ser semelhante no sofrimento, no medo e no temor, contudo nesse particular ele diferiu de nós. Refutados neste ponto, por fim saltam para outra sutileza: embora Cristo tenha temido a morte, não temeu a maldição e ira de Deus, da qual bem sabia estar seguro. Rogo, porém, aos leitores piedosos que ponderem quão dignificante isto é para Cristo, a saber, ter ele sido mais tímido e mais timorato que a esmagadora maioria do comum dos homens! Atrevidamente, os assaltantes e malfeitores costumam atirarse à morte sofregamente; muitos a desprezam de ânimo altivo; outros a enfrentam tranqüilamente. Que firmeza ou que grandeza teria sido que o Filho de Deus tenha sido fortemente abalado e quase aturdido pelo horror da morte? Ora, a respeito dele refere-se o que se poderia, comumente, considerar prodigioso: ante a intensidade da agonia, gotas de sangue lhe porejaram da face [Lc 22.44]. Nem, realmente, ofereceu ele este espetáculo aos olhos de outros, uma vez que dirigiu seus gemidos ao Pai em um recanto isolado. A dúvida é removida pelo fato de que se fez necessário que do céu descessem anjos que o assistissem com inusitado conforto [Lc 23.43]. Quão vergonhoso teria sido, como eu disse, este desfibramento, que se vergasse ele ante o temor da morte comum até este ponto: que se banhasse de suor de sangue, nem se pudesse refazer senão pela presença de anjos? Ponderemos bem sobre essa deprecação três vezes repetida, a proceder de incrível amargura de espírito: “Pai, se é possível, passe de mim este cálice” [Mt 26.39], não mostra, porventura, ser mais áspero e mais árduo o embate que Cristo enfrentou que um que proceda de morte comum? De que se evidencia que estes trapalhões com quem estou a disputar vociferam ousadamente acerca de coisas que lhes são ignoradas, porquanto jamais ponderaram seriamente o que signifique sermos nós redimidos do juízo de Deus. Com efeito, aqui está nossa sabedoria: sentir devidamente quanto nossa salvação custou ao Filho de Deus. Ora, se alguém pergunta se porventura então Cristo desceu às regiões infernais quando assim implorou a morte, respondo que este foi o começo. Donde se pode inferir quão cruéis e horríveis tormentos tenha ele sofrido quando se reconhecia estar diante do tribunal de Deus como réu, por nossa causa. Mas, embora nele o divino poder do Espírito se ocultasse por um momento, de sorte que desse lugar à fraqueza da carne, deve-se, não obstante, reconhecer que a tentação procedente da sensação de dor e de medo foi tal que não conflitasse com a fé. E desta maneira se cumpriu o que se encontra no discurso de Pedro: “que não foi possível fosse ele retido pelas dores da morte” [At 2.24], porquanto, sentindo-se como que abandonado por Deus, não se afastou, na verdade, um mínimo sequer da confiança de sua bondade. Isto ensina aquela celebrada invocação em que, ante a premência da dor, clamou: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” [Mt 27.46]. Ora, ainda que seja tomado de desmedida agonia não deixa, entretanto, de chamar Deus meu Àquele de quem exclama estar desamparado. Com efeito, assim fica refutado tanto o erro de Apolinário, quanto o erro daqueles que foram chamados monotelitas. Aquele imaginava que Cristo teve o Espírito eterno em lugar da alma, de sorte que seria homem apenas pela metade. Como se, na verdade, tivesse ele podido expiar nossos pecados, a não ser pela obediência ao Pai! Mas, onde está a disposição ou vontade de obediência, senão na alma, a qual sabemos que nele foi perturbada para que, dissipado o temor, alcancem nossas almas paz e descanso? Ademais, contra os monotelitas vemos que, agora como homem, ele não quis o que queria segundo a natureza divina. Deixo de parte que ele, mediante sentimento contrário, se sobreponha ao temor de que temos falado, pois não é obscura essa aparência de contradição: “Pai, livra-me desta hora. Mas, eu vim justamente para esta hora. Pai, glorifica teu nome” [Jo 12.27, 28]. Nesta perplexidade, contudo, nenhum descomedimento houve, o qual se vê em nós ainda quando nos esforçamos ao máximo para dominar-nos.

João Calvino