Total de visualizações de página

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

CORRETA E APROPRIADAMENTE SE DIZ HAVER CRISTO MERECIDO POR NÓS A GRAÇA DE DEUS E A SALVAÇÃO

 OS MÉRITOS DE CRISTO E A GRAÇA DE DEUS NÃO SE EXCLUEM, NEM SE CONFLITAM


À guisa de apêndice, deve-se explicar também esta questão. Pois há certos homens perversamente sutis, os quais, embora confessem que alcançamos a salvação através de Cristo, entretanto não suportam ouvir a palavra mérito, a qual pensam obscurecer a graça de Deus. E por isso querem que Cristo seja apenas o instrumento ou ministro, não o autor da vida, ou Chefe e Príncipe, como é chamado por Pedro [At 3.15]. Admito, com efeito, que se alguém quisesse opor Cristo ao julgamento de Deus, singelamente e de si, não haverá lugar para mérito, porquanto não se achará no homem dignidade que possa ter mérito para com Deus. Pelo contrário, como, com muita verdade, escreve Agostinho: “A mais luminosa luz da predestinação e da graça é o próprio Salvador, o homem Cristo Jesus, que se aprestou para que fosse isto na natureza humana que nele há, sem mérito nenhumde obras ou de fé a precedê-lo. Responda-se, insisto, como Cristo enquanto homem pôde merecer ser tomado pelo Verbo coeterno com o Pai em unidade de Pessoa, para ser o Filho unigênito de Deus?275 Mostra-se, portanto, em nosso Cabeça a própria fonte da graça, donde, segundo a medida de cada um, se difunde ela por todos os seus membros. Por esta graça, pela qual esse homem se fez Cristo desde seu começo, cada um de nós se faz cristão desde o início de sua fé.” De igual modo, em outro lugar: “Nenhum exemplo há mais luminoso da predestinação que o próprio Mediador. Pois Aquele que da semente de Davi fez esse homem justo, o qual, sem qualquer mérito precedente de sua vontade, jamais seria injusto, ele próprio dos injustos faz justos os que são membros dessa Cabeça”, e daí por diante. Portanto, quando se trata do mérito de Cristo, não se estatui que nele próprio resida o princípio desse mérito; ao contrário, remontamos à ordenança de Deus, que é a causa primeira, porquanto de seu puro beneplácito Deus o estatuiu por Mediador, para que nos adquirisse a salvação. E assim é insipiente contrapor o mérito de Cristo à misericórdia de Deus. Ora, é regra comum que as coisas que são subalternas não se ponham em conflito com aquelas que lhe sejam subordinadas, e por isso nada impede que a justificação dos homens seja gratuita, provinda da mera misericórdia de Deus, e ao mesmo tempo intervenha o mérito de Cristo, que à misericórdia de Deus está subordinado. Mas, a nossas obras se contrapõe apropriadamente tanto o favor gratuito de Deus, quanto a obediência de Cristo, cada um em sua medida, porquanto Cristo não pôde merecer o que quer que seja, a não ser pelo beneplácito de Deus, mas porque fora a isto destinado: que por seu sacrifício aplacasse a ira de Deus e por nossa obediência expungisse nossas transgressões. Em síntese, uma vez que o mérito de Cristo depende tão-somente da graça de Deus, a qual nos constituiu este modo de salvação, com toda propriedade se opõe a toda justiça humana, não menos que a graça de Deus, que é a causa donde procede.

João Calvino