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segunda-feira, 13 de agosto de 2018

CRISTO, FILHO DE DEUS E FILHO DO HOMEM


Pois, se sua filiação, por assim dizer, teve princípio desde que se manifestou na carne, segue-se ter sido ele o Filho também com respeito à natureza humana. Serveto e desvairados semelhantes querem que Cristo seja o Filho de Deus só quando apareceu na carne, porquanto à parte da carne não pôde ele ser designado com este título. Respondam-me, pois: ele é o Filho de conformidade com ambas essas naturezas e em respeito a uma e outra delas? Assim, realmente, palram eles. De maneira bem distinta, porém, ensina Paulo. Confessamos, sem dúvida, que Cristo se chama o Filho em relação à carne humana; contudo, não como os fiéis, filhos apenas por adoção e graça; ao contrário, o Filho verdadeiro e por natureza, e por isso o único, de sorte que, mediante esta marca, seja distinguido de todos os demais. Pois, a nós que fomos regenerados para uma nova vida, Deus nos digna do título de filhos, mas o título Filho, verdadeiro e unigênito, Deus só confere a Cristo. Como, porém, é único em tão grande número de irmãos, senão porque possui por natureza o que nós recebemos por dádiva? E à pessoa toda do Mediador estendemos esta honra: que é verdadeira e propriamente o Filho de Deus, que não só foi nascido da Virgem, mas também se ofereceu ao Pai por sacrifício na cruz; contudo, com respeito à Divindade, como o ensina Paulo, quando se diz “separado para o evangelho de Deus, que antes prometera acerca de seu Filho, que foi gerado da semente de Davi segundo a carne e declarado Filho de Deus em poder” [Rm 1.14]. Por que, enunciando-o expressamente como Filho de Davi segundo a carne, diria, separadamente, haver ele sido declarado Filho de Deus, se não quisesse com isso indicar que isso depende de outra parte além da própria carne? Ora, no mesmo sentido em que Paulo diz em outro lugar [2Co 13.4], que Cristo sofreu pela fraqueza da carne e que ressuscitou pelo poder do Espírito, assim agora aqui estabelece a diferença de uma e outra natureza. Indubitavelmente, é necessário que estas pessoas exaltadas confessem, querendo ou não, que assim Jesus Cristo tomou de sua mãe uma natureza em virtude da qual é chamado Filho de Davi, da mesma maneira tem da parte do Pai outra natureza pela qual é chamado Filho de Deus, que é muito distinta da natureza humana.  A Escritura o adorna com duplo título, chamando-o, indistintamente, ora o Filho de Deus, ora o Filho do Homem. Quanto ao segundo destes títulos, é indubitáve que é chamado assim em conformidade com o uso comum da língua hebraica, uma vez ser ele da progênie de Adão. Por outro lado, afirmo que ele é chamado o Filho de Deus em razão de sua Deidade e de sua essência eterna, porquanto não menos próprio é referir-se à natureza divina por ser ele chamado o Filho de Deus, do que referir-se à natureza humana por ser chamado o Filho do Homem. Em conclusão, nesta passagemque citei [Rm 1.1-4], Paulo não entende de outra maneira ter sido o Filho de Deus declarado em poder Aquele que, segundo a carne, foi gerado da semente de Davi, do que ensina em outro lugar [Rm 9.5], a saber: ser Cristo o Deus bendito para sempre, o qual descende dos judeus segundo a carne. Ora, se em ambas essas passagens se assinala a distinção da dupla natureza, com que direito negarão ser o Filho de Deus com respeito à natureza divina Aquele que, segundo a carne, é igualmente o Filho do Homem?

João Calvino