Total de visualizações de página

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O SENTIDO DA REALEZA DE CRISTO EM RELAÇÃO A NÓS


Quanto à afirmação de que não podemos de outra maneira compreender por nós mesmos a força e a utilidade do reino de Cristo, o qual bem sabemos ser espiritual, facilmente se prova disto: embora durante todo o curso da vida tenhamos de militar sob a cruz, esta condição nos é dura e mísera. Portanto, que nos aproveitaria sermos congregados sob o governo do Rei celeste, a não ser que seu fruto se patenteasse além do estado da vida terrena? E, por isso, deve-se saber que tudo quanto de felicidade em Cristo nos foi prometido não consiste em proveitos exteriores, de sorte que levemos uma vida alegre e tranqüila, floresçamos em riquezas, estejamos livres de todo malefício e refluemos das delícias pelas quais a carne costuma suspirar. Pelo contrário, consiste no que é próprio da vida celeste. Mas, assim como no mundo o estado próspero e almejável de um povo se contém, em parte, na abundância de todos os bens e na paz doméstica, em parte em defesas poderosas, mercê das quais esteja seguro contra a violência externa, assim também Cristo aos seus farta de todos os recursos necessários para a eterna salvação das almas, e os mune de fortitude pela qual se postem inexpugnáveis contra todas e quaisquer investidas dos inimigos espirituais. Do que concluímos que ele reina mais para nós do que para si próprio, e isto interna e externamente, de sorte que, refeitos, aliás, até onde Deus sabe ser-nos conveniente, dos dons do Espírito, de que somos por natureza desprovidos, sintamos destas primícias estarmos realmente unidos a Deus para a perfeita bem-aventurança. Ademais, como respaldados do poder do mesmo Espírito, não duvidemos de que haveremos de ser sempre vitoriosos contra o Diabo, o mundo e toda e qualquer espécie de malefício. A isto contempla a resposta de Cristo aos fariseus: porque o reino de Deus está dentro de nós, ele não vem mediante sinais externos[Lc 17.20, 21]. Pois é provável que, pelo fato de que ele se confessava ser aquele Rei sob quem se deveria esperar a suprema bênção de Deus, os fariseus, em zombaria, solicitaram que ele exibisse suas credenciais. Ele, porém, para que não se engodem estultamente com pompas aqueles que são, de outra sorte, mais do que convém, inclinados para a terra, ordena que penetrem em suas próprias consciências, porque “o reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo” [Rm 14.17]. Com estas palavras, somos sucintamente ensinados o que o reino de Cristo nos confere. Ora, visto não ser este um reino terreno ou carnal, que esteja sujeito a corrupção, mas espiritual, nos eleva até a vida eterna, para que passemos pacientemente por esta vida, sob tribulações, carência de sustento, frio, desprezo, injúrias e outras inquietações, contentes só com isto: que nosso Rei nunca nos haverá de deixar à míngua, contudo não nos virá em socoro, em nossas necessidades, até que, havendo desempenhado nossa militância, sejamos convocados ao triunfo, porquanto a natureza de seu reinado é tal que compartilha conosco tudo quanto recebeu do Pai. Ora, visto que ele nos arma e nos equipa com seu poder, nos adorna com sua beleza e magnificência, nos cumula com suas riquezas, tudo isso nos serve grandemente para nos gloriarmos e sentirmos tanta confiança, que pelejemos intrepidamente com o Diabo, o pecado e a morte. Enfim, como revestidos de sua justiça, superemos valentemente a todos os opróbrios do mundo; e assim como ele nos farta liberalmente de seus dons, assim também, de nossa parte, produzamos frutos para sua glória.

João Calvino