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segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A FÉ SE CALCA NA PALAVRA DA ESCRITURA E NELA SE CONTÉM

Na verdade, daqui uma vez mais enfeixamos o que foi antes exposto: que a fé não tem menos necessidade da Palavra que o fruto da raiz viva da árvore, porquanto, atesta-o Davi, nenhum outro pode esperar em Deus senão aquele que conhece seu nome [Sl 9.10]. Esse conhecimento, porém, não provém da imaginação de cada um, mas até onde o próprio Deus é testemunha de sua bondade. Isto confirma-o, em outro lugar, o mesmo Profeta: “Tua salvação em conformidade com tua palavra” [Sl 119.41]. Igualmente: “Em tua palavra tenho esperado; salva-me [Sl 119.146, 147]. Onde se deve notar, primeiro, a relação da fé com a Palavra; a seguir, a conseqüência resultante da fé. Contudo, não estamos com isso excluindo o poder de Deus, em cuja contemplação a fé há de apoiar-se, se queremos conferir a Deus sua honra. Paulo parece falar acerca de Abraão de forma fria ou vulgar: que ele creu que Deus, que lhe prometera uma descendência abençoada, era poderoso para cumprir esta promessa [Rm 4.21]. De igual modo, em outro lugar, em referência a si próprio: “Sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar meu depósito para aquele dia” [2Tm 1.12]. Com efeito, se cada um pondera consigo que muitas vezes dúvidas se insinuam sem cessar em nossa mente, quanto ao poder de Deus, reconhecerá suficientemente que aqueles que o magnificam, como é ele digno, têm feito não reduzido progresso na fé. Todos confessaremos que Deus pode tudo quanto quer; quando, porém, cada mínima tentação nos consterna de medo e nos faz atônitos de horror, dissose manifesta que não diminuímos o poder de Deus ao qual preferimos às ameaças de Satanás contra suas promessas. Esta é a razão por que Isaías, quando quer imprimir no coraçãodo povoa certeza da salvação, tão magnificamente discorre acerca do imenso poder de Deus. Com freqüência parece que, onde ele começou a considerar acerca da esperança de perdão e de reconciliação, muda para outro assunto e vagueia por longos e supérfluos rodeios, celebrando quão maravilhosamente Deus governa o mecanismo do céu e da terra, juntamente com toda a ordem da natureza. Contudo, nada aqui há que não sirva à presente circunstância; porquanto, a não ser que o poder de Deus, pelo qual tudo pode, se nos anteponha aos olhos, dificilmente nossos ouvidos receberão a Palavra, ou não a estimarão com o justo valor. Acrescenta que aqui se lhe assinala o poder eficaz, visto que a piedade, como foi visto em outro lugar, acomoda sempre o poder de Deus ao uso e à necessidade, e põe diante de si especialmente as obras de Deus mediante as quais ele se atestou ser o Pai. Daqui essa menção da redenção tão freqüente nas Escrituras de que os israelitas podiam aprender que Deus, que uma vez por todas lhes fora o autor da salvação, teria de ser seu eterno guardião. Também, com seu exemplo, Davi nos lembra que os benefícios que Deus conferiu a cada um em particular valem para a confirmação de sua fé para o futuro. Com efeito, quando parece haver-nos abandonado, convém que estendamos mais longe nossos pensamentos, para que seus antigos benefícios nos levantem o ânimo, como lemos em outro Salmo: “Lembrei-me dos dias antigos, meditei em todas as suas obras” etc. [Sl 143.5]. Igualmente: “Recordar-me-ei das obras do Senhor, e de suas maravilhas desde o princípio” [Sl 77.11]. Mas, uma vez que, à parte da Palavra, evanescente é tudo quanto concebemos do poder de Deus e de suas obras, afirmamos, não improcedentemente, que nenhuma fé existe até que Deus a faça resplandecer com o testemunho de sua graça. Aqui, entretanto, é possível que se suscite uma pergunta: que se deve sentir a respeito de Sara e de Rebeca, as quais, segundo parece, movidas do zelo da fé, foram além dos limites da Palavra? Sara, como ardesse pelo desejo de receber a prole prometida, entregou sua serva ao marido [Gn 16.2]. Que ela tenha pecado de muitas maneiras, não há como negar-se. Contudo, estou agora abordando esta falha: que, arrebatada pelo seu zelo, não se conteve dentro dos limites da Palavra de Deus. No entanto, é certo que esse desejo procedeu de sua fé. Rebeca, notificada por divino oráculo acerca da eleição de seu filho Jacó, procura-lhe a bênção mediante depravado ardil, engana a seu marido, testemunha e ministro da graça de Deus, obriga seu filho a mentir, corrompe por variadas fraudes e imposturas a verdade de Deus; em suma, ao expor a promessa ao ridículo, quanto está em si, a aniquila. Contudo, este procedimento não foi vazio de fé, por mais que seja vicioso e digno de censura, visto que lhe foi necessário sobrepujar muitos óbices, para que tão incisivamente buscasse o que, sem esperança do beneficio terreno, era abundante de ingentes dificuldades e perigos. Assim também não privaremos inteiramente de fé ao santo patriarca Isaque que, avisado pelo mesmo oráculo quanto à honra transferida ao filho mais moço, entretanto, não deixa de ser propenso para com seu primogênito Esaú. Na verdade, estes exemplos ensinam que, freqüentemente, o erro se mescla com a fé; contudo, de tal maneira que ela, onde é verdadeira, mantenha sempre a preeminência. Pois, assim como o erro particular de Rebeca não tornou nulo o efeito da bênção, assim nem impediu que a fé em sua alma imperasse generalizadamente e fosse o princípio e causa desse proceder. Nisto, entretanto, Rebeca deixou à mostra quão escorregadia é a inclinação da mente humana tão logo se permite um mínimo sequer. Mas, ainda que deficiência e fraqueza obscureçam a fé, contudo não a extinguem. Enquanto isso, nos previnem de quão solicitamente nos convenha depender da boca de Deus, e ao mesmo tempo confirmam o que já ensinamos: que a fé se dissipa, a não ser que seja sustentada pela Palavra, assim como em seus sinuosos devaneios teriam se desvanescido as cogitaçõesde Sara, de Isaque e de Rebeca, não fora que na obediência da Palavra elas fossem retidas pelo freio secreto de Deus.

João Calvino