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sexta-feira, 17 de agosto de 2018

A VERDADEIRA FÉ É EMBASADA NA PALAVRA DE DEUS ESCRITA, POLARIZADA NO PLENO CONHECIMENTO DE SUA VONTADE

Este, portanto, é o verdadeiro conhecimento de Cristo: se o recebemos como é oferecido pelo Pai, isto é, vestido de seu evangelho, porquanto, como ele foi destinado por alvo de nossa fé, assim também, em relação a ele, não avançamos pela via reta, a não ser que o evangelho vá adiante. E aí de fato se nos abrem os tesouros da graça, os quais, uma vez fechados, de bem pouco benefício nos seria Cristo. Assim, Paulo une a fé à doutrina como sua companheira inseparável, mediante estas palavras: “Mas vós não aprendestes assim a Cristo, se é que o tendes ouvido, e nele fostes ensinados, como é a verdade em Cristo” [Ef 4.20, 21]. Entretanto, não restrinjo a fé ao evangelho a ponto de negar que o que Moisés e os Profetas ensinaram fosse então suficiente para edificá-la devidamente. Mas, visto que no evangelho foi exibida mais plenamente na manifestação de Cristo, com razão ela é chamada por Paulo “a doutrina da fé” [1Tm 4.6]. Razão pela qual também diz em outro lugar que, pela vinda da fé, a lei foi abolida [Rm 10.4], entendendo por esta expressão o novo e insólito modo de ensinar pelo qual, desde que apareceu como nosso Mestre, Cristo nos fez ainda mais luminosa a misericórdia de Deus e testificou mais solidamente de nossa salvação. Contudo, será um método mais fácil e mais apropriado, se descermos gradativamente do gênero à espécie. Primeiramente, devemos estar lembrados de que há uma relação permanente da fé com a Palavra; ela não pode separar-se desta, da mesma forma como os raios do próprio sol não podem separar-se dele, do qual se originam. Por isso, Deus proclama em Isaías [55.3]: “Ouvi-me e vossa alma viverá.” E João mostra esta mesma fonte da fé nestas palavras: “Estas coisas foram escritas para que creiais” [Jo 20.31]. Também o Profeta, desejando exortar o povo à fé: “Hoje”, diz ele, “se derdes ouvido a sua voz” [Sl 95.7]. E ouvir é, a cada passo, tomado na Escritura como significando crer. Enfim, por esta marca, não é em vão que Deus distingue, em Isaías [54.13], os filhos da Igreja dos estranhos: que a todos eles ensinará, para que sejam dele ensinados; porque, se o benefício fosse indiscriminado, por que dirigiria a Palavra a uns poucos? A istocorresponde o fato de que, a cada passo, os evangelistas põem como sinônimos os termos fiéis e discípulos; e especialmente Lucas, em Atos dos Apóstolos, com freqüência maior, também estende este designativo discípulo até mesmo a uma mulher [At 9.36]. Pelo quê, se a fé se desvia sequer um mínimo desta meta que deve colimar, já não retém sua natureza, mas é incerta credulidade e vago devaneio da mente. A mesma Palavra é a base em que a fé se apóia e se sustém. Se daí declina, desmoronase. Tire-se, pois, a Palavra e já nenhuma fé restará. Não estamos aqui discutindo se porventura é necessário o ministério do homem para semear a Palavra de Deus, da qual é concebida a fé, questão esta que trataremos em outro lugar. Estamos, porém, dizendo que a própria Palavra, sem importar de que maneira nos é conferida, é como que um espelho no qual a fé possa contemplar a Deus. Portanto, quer Deus aplique nisto os homens como instrumentos, quer opere por seu exclusivo poder, contudo àqueles a quem quer atrair a si, ele se representa sempre por meio de sua Palavra. Do quê também Paulo define a fé como a obediência que se presta ao evangelho [Rm 1.5]; e, em outro lugar [Fp 2.17], louva entre os filipenses a submissão à fé. Pois na compreensão da fé não se trata unicamente que reconheçamos que Deus existe, mas também que, na verdade e primordialmente, entendamos qual é sua vontade para conosco. Ora, não nos interessa tanto saber quem seja ele em si, mas, antes, o que ele quer ser para nós. Temos, pois, agora o fato de que a fé é o conhecimento da vontade divina para conosco, auferido de sua Palavra. Mas o fundamento disto é a persuasão da verdade de Deus. Enquanto o entendimento jaz vacilante a respeito desta verdade, a Palavra terá bem pouca, para não dizer nenhuma, autoridade. Tampouco basta crer que Deus é veraz, o qual nem pode enganar, nem mentir, se não aceitamos como indubitável que tudo quanto procede dele é a sacrossanta e inviolável verdade.

João Calvino