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sexta-feira, 17 de agosto de 2018

A FÉ REPOUSA NA PROMESSA DA GRAÇA, DA MISERICÓRDIA E DA VERDADE DE DEUS EM CRISTO

Uma vez que, porém, nem o coração humano se eleva à fé em função de toda e qualquer palavra de Deus, impõe-se indagar ainda o que a fé propriamente visualiza na Palavra. Palavra de Deus foi a que disse a Adão: “Certamente morrerás” [Gn 2.17]. Palavra de Deus foi a que disse a Caim: “A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim” [Gn 4.10]. Mas essas palavras de si mesmas nada podem senão abalar a fé, uma vez que estão mui longe de ser capazes de firmá-la. Entrementes, não negamos que seja função da fé subscrever à verdade de Deus, sempre que ela fale, o que quer que ela fale e de qualquer modo que ela fale. Mas apenas indagamos: que é que a fé encontra na Palavra do Senhor em que se possa reclinar e descansar? Onde nossa consciência só divisa indignação e vingança, como não tremerá e não se apavorará? Mas, a um Deus de quem está atemorizada, como não fugiria dele? No entanto, a fé deve buscar a Deus, não fugir dele. Salta, pois, à vista que ainda não nos está facultada plena definição de fé, porquanto não se deve ter por fé o meramente conhecer a vontade de Deus, qualquer que venha a ser. Que sucederá se, em lugar de sua vontade, cujo anúncio é por vezes triste e a proclamação atemorizante, lhe submetermos à benevolência ou à misericórdia? Certamente que assim teremos chegado bem mais perto da natureza da fé. Pois então somos atraídos a buscar a Deus, depois de dizermos que a salvação nos foi posta nele, precisamente o que se nos confirma onde Deus declara que ela lhe é do interesse e do empenho. Por isso, faz-se necessária a promessa da graça que nos testifique que o Pai é propício, quando nem podemos aproximar-nos dele de outra maneira, e só assim o coração do homem nela pode repousar. Por esta razão, nos Salmos, a cada passo, se associam estas duas, a misericórdia e a verdade, como se ligadas entre si [Sl 89.14, 24; 92.2; 98.3; 100.5; 108.4; 115.1], porque não nos ajudaria nada saber que Deus é verdadeiro, a não ser que, clementemente, a si nos atraísse; nem teríamos meios de abraçar-lhe a misericórdia, a não ser que ele no-la oferecesse através de sua Palavra: “Declarei tua verdade e tua salvação; não ocultei tua bondade e tua verdade. Guardem-me tua bondade e tua verdade” [Sl 40.10, 11]. Em outro lugar: “Tua misericórdia chega aos céus; tua verdade até as nuvens” [Sl 36.5]. Também: “Todos os caminhos do Senhor são clemência e verdade aos que guardam sua aliança” [Sl 25.10]. Igualmente: “Multiplicada foi sobre nós a misericórdia, e a verdade do Senhor permanece para sempre” [Sl 117.2]. Ainda: “Cantarei a teu nome em razão de tua misericórdia e de tua verdade” [Sl 138.2]. Deixo de focalizar o que no mesmo sentido se lê nos profetas: que Deus é clemente e fiel em suas promessas. Pois declararíamos temerariamente que Deus nos é propicio, a não ser que ele próprio de si o ateste e se nos antecipe por seu convite, para que sua vontade não nos seja duvidosa nem obscura. Mas, já se viu que Cristo é o único penhor do amor de Deus, sem o qual, por toda parte, se lhe põem à mostra os sinais do ódio e da ira. Ora, visto que o conhecimento da bondade de Deus nos serve bem pouco, a não ser que nela nos faça descansar, excluído deve ser o conhecimento misturado de dúvida, o qual não esteja firmemente em acordo consigo próprio; pelo contrário, se põe em conflito consigo próprio. Com efeito, mui longe está a mente do homem, visto ser cega e entenebrecida, de penetrar e se elevar até o ponto de perceber a vontade de Deus! E também o coração, uma vez que flutua em perpétua hesitação, longe está de permanecer seguro nesta convicção! Daí importa, de outro lado, não só que a mente nos seja iluminada, mas também que nos seja firmado o coração, para que a Palavra de Deus obtenha pleno crédito entre nós. Portanto, podemos obter uma definição perfeita de fé, se dissermos que ela é o firme e seguro conhecimento da divina benevolência para conosco, fundado sobre a veracidade da promessa graciosa feita em Cristo, não só é revelado à nossa mente, mas é também selado em nosso coraçãomediante o Espírito Santo.

João Calvino