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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O ARREPENDIMENTO É FRUTO DIRETO E NECESSÁRIO DA FÉ

Cristo e João Batista, dizem eles, em suas pregações, primeiro exortam o povo ao arrependimento, em seguida acrescentam que o reino dos céus está próximo [Mt3.2; 4.17]. Os apóstolos recebem a incumbência de pregar a mesma coisa, ordem que Paulo também seguiu, segundo a menção que Lucas faz [At 20.21]. E todavia, enquanto se prendem supersticiosamente no encadeamento das sílabas, não atentam para o sentido pelo qual se ligam entre si essas palavras. Ora, enquanto Cristo, o Senhor, e João Batista, pregam desta maneira: “Arrependei-vos, pois, porque o reino dos céus está próximo” [Mt 3.2], porventura não derivam da própria graça e da promessa de salvação a causa do arrependimento? Logo, suas palavras valem exatamente como se estivessem afirmando: “Visto que o reino dos céus está próximo, por isso arrependei-vos.” Ora, Mateus, quando narrou que João pregara nesses termos, ele estava ensinando que nele se cumpriu o vaticínio de Isaías, em relação à voz que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, fazei retas as veredas de nosso Deus” [Mt 3.3; Is 40.3]. Mas, no Profeta, ordena-se que essa voz comece pela consolação e alegre nova” [Is 40.1, 2]. Contudo, quando atribuímos à fé a origem do arrependimento, não sonhamos algum espaço de tempo no qual se lhe dê à luz; ao contrário, queremos pôr à mostra que o homem não pode aplicar-se seriamente ao arrependimento, a não ser que reconheça ser de Deus. Mas, ninguém é verdadeiramente persuadido de que é de Deus, salvo aquele que haja antes reconhecido sua graça. Estas coisas, porém, serão mais lucidamente discutidas no próprio andamento da exposição. Talvez os tenha enganado o fato de que muitos são quebrantados de sobressaltos de consciência ou afeiçoados à obediência antes que sejam imbuídos do conhecimento da graça; com efeito, antes mesmo que tenham sentido o gosto. E é este o chamado temor inicial que alguns contam entre as virtudes, já que o vêem como muito parecido com verdadeira e justa obediência. Aqui, porém, não se trata de quão variadamente Cristo nos atraia a si, ou nos prepare para o cultivo da piedade: estou apenas afirmando que não se pode achar retidão alguma onde não reina esse Espírito que Cristo recebeu para que o comunicasse a seus membros. Digo, em seguida, de conformidade com essa afirmação do Salmo [130.4]: “Em ti há propiciação, para que sejas temido”, que ninguém jamais reverenciará a Deus, senão aquele que confiar que ele lhe é propício; ninguém se cingirá de boa vontade para a observância da lei, senão aquele que estiver persuadido de que suas expressões de obediência lhe são aprazíveis. Esta deferência de Deus, em relevar-nos o demérito e tolerar os vícios, é sinal de seu paterno favor. Esta exortação de Oséias também mostra Isto: “Vinde, retornemos ao Senhor, porque ele nos apanhou e nos sarará; nos feriu e nos curará” [Os 6.1], pois a esperança de perdão é adicionada como um acicate, para que os homens não adormeçam em seus pecados. Mas, carece de toda evidência de razão o desvario daqueles que, para começar do arrependimento, prescrevem a seus neófitos certos dias durante os quais se exercitem em penitência; passados, afinal, os quais, os admitem à comunhão da graça do evangelho. Falo da maior parte dos anabatistas, especialmente daqueles que exultam sobremaneira em ser tidos como os espirituais, e de seus confrades, os jesuítas, e gentalha afim. Tais frutos, evidentemente, são produzidos por esse espírito de torvelinho que limita a uns poucos dias a penitência que ao homem cristão deve prorrogar-se por toda a vida.

João Calvino