Total de visualizações de página

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

CRISTO CONSUMOU-NOS A REDENÇÃO MEDIANTE SUA OBEDIÊNCIA E MORTE VICÁRIA


Agora, quando se pergunta como, cancelados os pecados, Cristo tenha removido o antagonismo existente entre nós e Deus, e adquirido a justiça que no-lo fizesse favorável e benévolo, pode-se responder, de modo geral, que isto ele nos conseguiu mediante todo o curso de sua obediência. O que se prova do testemunho de Paulo: “Como, pela transgressão de um, muitos foram constituídos pecadores, assim, pela obediência de um, somos constituídos justos” [Rm 5.19]. E de fato, em outro lugar ele estende a toda a vida de Cristo a causa do perdão que nos exime da maldição da lei: “Quando veio a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, sujeito à lei, para que redimisse aqueles que estavam debaixo da lei” [Gl 4.4, 5]. Assim também, em seu próprio batismo, declarou estar ele cumprindo parte da justiça, porquanto estaria obedientemente executando o mandado do Pai [Mt. 3.15]. Enfim, desde que se revestiu da pessoa de servo, começou a pagar o preço de nossa libertação a fim de nos redimir. Todavia, para definir mais precisamente o modo da salvação, a Escritura prescreve isto como sendo peculiar e próprio à morte de Cristo. Ele próprio declara “dar a vida em resgate por muitos” [Mt 20.28]. Paulo ensina que “Cristo morreu por nossos pecados” [Rm 4.25; 1Co 15.3]. João Batista proclamava que ele viera a fim de tirar os pecados do mundo, porquanto era o Cordeiro de Deus [Jo 1.29]. Em outro lugar, Paulo declara que “fomos justificados gratuitamente, mercê da redenção que há em Cristo, porque ele nos foi proposto como o reconciliador em seu sangue” [Rm 3.24, 25]. Igualmente, “que fomos justificados em seu sangue e reconciliados por sua morte” [Rm 5.9, 10]. De novo, “Aquele que não conhecia pecado, fez-se pecado por nós, para que nele fôssemos justiça de Deus” [2Co 5.21]. Não enumerarei todas as referências, porque a lista seria imensa e muitas serão citadas a seguir, em sua devida ordem. Razão por que, no símbolo de fé, que chamam Credo Apostólico, ocorre imediatamente, na mais apropriada ordem, a transição do nascimento de Cristo à sua morte e ressurreição, em que reside a suma da perfeita salvação. Contudo, nem se exclui a parte remanescente da obediência que ele efetuou na vida, como Paulo a compreende toda, do começo ao fim, já que ele “esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, foi obediente ao Pai até a morte, e morte de cruz” [Fp 2.7, 8]. E de fato também na própria morte de Cristo ocupa o primeiro plano sua sujeição voluntária, porquanto seu sacrifício de nada teria servido à justiça, a não ser que fosse oferecido de livre vontade. Portanto, quando o Senhor testificou que “dava sua vida pelas ovelhas” [Jo 10.15], acrescenta, expressamente: “Ninguém a toma de mim mesmo” [Jo 17.18]. Neste sentidodiz Isaías que “ele ficou mudo como um cordeiro diante do tosquiador” [Is 53.7]. E a história do evangelho afirma que ele se adiantou ao encontro dos soldados [Jo 18.4] e diante de Pilatos, não recorrendo a qualquer defesa própria, firme se postou para submeter-se a julgamento [Mt. 27.12, 14]. Isto, na verdade, não sem luta, porquanto não apenas tomara sobre si nossas misérias, mas ainda se fez necessário ser, desta maneira, testada a obediência que prestava a seu Pai. E foi isto evidência não comum de seu incomparável amor para conosco: lutar com horrível espantalho, e por entre aqueles duros tormentos afastar toda preocupação consigo mesmo, para que pudesse satisfazer-nos os interesses. Isto, por certo, se deve sustentar: que não se pôde de outra sorte propiciar devidamente a Deus, senão, enquanto abdicando do afeto próprio, Cristo se lhe submeteu, e se lhe entregou plenamente à vontade. Nesta matéria o Apóstolo cita, apropriadamente, este testemunho do Salmo: “No livro da lei foi escrito sobre mim. Deleito-me em fazer tua vontade, ó Deus. Quero que tua lei esteja em meu coração. Então, eu disse: Eis que venho” [Sl 40.7 9; Hb. 10.7, 9]. Mas, visto que só no sacrifício e na ablução com que se expiam os pecados as consciências aterrorizadas acham descanso, somos, com razão, para aí dirigidos, e então na morte de Cristo se nos depara a essência da vida. Todavia, visto que ante o tribunal celeste de Deus permanecia nossa maldição resultante da culposidade, menciona-se, em primeiro lugar, a condenação perante o procuradorda Judéia, Pôncio Pilatos, para que saibamos que a pena a que havíamos de sujeitar-nos fora infligida ao Justo. Não podíamos fugir ao horrível juízo de Deus. Para que daí nos livrasse, Cristo se deixou condenar diante de um homem mortal, aliás, até mesmo ímpio e profano. Pois, o nome do procurador é expresso não só para confirmar a fidedignidade da história, mas ainda para que aprendamos o que Isaías ensina: “Sobre ele esteve o castigo de nossa paz, e por sua pisadura fomos curados” [Is 53.5]. Ora, nem era bastante que, a fim de tolher-nos a condenação, arrostasse ele qualquer modalidade de morte. Pelo contrário, para que nos satisfizesse à redenção, foi-lhe imposto escolher um gênero de morte em que, não só transferisse para si a condenação, mas também tomasse sobre si a expiação, e de uma e outra nos livrasse. Se Cristo tivesse sido degolado por assaltantes ou tumultuariamente morto em uma sedição do poviléu, em morte desse tipo nenhuma espécie de satisfação teria subsistido. Quando, porém, é ele colocado diante do tribunal como réu, é acusado e é premido de testemunhos contrários, é sentenciado à morte pela boca do próprio juiz. Com essas provas compreendemos que ele assumiu a pessoa de um criminoso e malfeitor. E aqui devem notar-se duas coisas que não só haviam sido preditas por vaticínios dos profetas, mas também trazem insigne consolação e confirmação à fé. Pois quando ouvimos que Cristo, da tribuna do juiz, foi enviado à morte, que foi pendurado entre ladrões, temos aí o cumprimento desta profecia que é citada pelo evangelista: “Entre os iníquos foi ele contado” [Is 53.12; Lc 22.37]. Por que isso? Seguramente, para que morresse em lugar do pecador, não do justo ou do não-culpado, porquanto sofria a morte, não em virtude da inocência, mas por causa do pecado. Por outro lado, quando ouvimos ser ele absolvido pela mesma boca pela qual fora condenado (ora, Pilatos foi compelido não uma só vez a publicamente dar testemunho de sua inocência), vem à mente o que está em outro Profeta: “então restituí o que não furtei” [Sl 69.4]. E assim, não apenas contemplaremos representada em Cristo a pessoa de um pecador e criminoso, mas também, sua inocência a resplender, ao mesmo tempo se fará evidente que foi ele acusado de crime alheio, antes que de crime próprio.265 Sofreu, portanto, sob Pôncio Pilatos, sendo assim citado pela solene sentença do procurador ao número dos criminosos, entretanto, mesmo que não seja, ao mesmo tempo, por ele próprio pronunciado justo, quando afirma não achar nele nenhuma causa para incriminação [Jo 18.38]. Esta é nossa absolvição: que a culpa que nos mantinha sujeitos à pena foi transferida para a cabeça do Filho de Deus [Is 53.12]. Pois se deve ter em mente, acima de tudo, esta permuta, para que não tremamos e estejamos ansiosos por toda a vida, como se ainda pendesse sobre nós a justa vingança de Deus, a qual o Filho de Deus transferiu para si.

João Calvino