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domingo, 19 de agosto de 2018

FIRMADA NA DIVINA PALAVRA, A FÉ JAMAIS CEDE TERRENO À INCREDULIDADE NEM SE DEIXA ABATER-SE POR ELA

Para conter a tais investidas, a fé se arma e se guarnece da Palavra do Senhor. E quando tentação dessa natureza a assalta, a saber, que Deus nos é inimigo, uma vez que se nos mostra hostil, a fé replica em contrário: enquanto nos aflige, Deus é também misericordioso; já que seu castigo provém antes do amor que da ira. Quando desta cogitação é ela acutilada, a saber, que Deus é vingador das iniqüidades, ela usa como escudo o perdão preparado para todos os delitos, sempre que o pecador se volve para a clemência do Senhor. De sorte que a mente piedosa, por mais que se veja, de modo extraordinário, inquieta e atormentada, no entanto emerge, afinal, sobre todas as dificuldades; nem de modo algum consente que lhe seja tirada a confiança na misericórdia divina. Ao contrário, todas que a afligem e a atormentam se convertem numa mais sólida garantia desta mesma confiança. Por prova deste fato é que os santos, quando a seus olhos parecem ser extremamente acossados pela vingança divina, no entanto junto a ele depõem suas recriminações; e quando parece que de modo algum serão ouvidos, não menos o invocam. Ora, a que fim serviria lamuriar-se perante aquele de quem nenhuma consolação esperariam? Na verdade, jamais lhes passaria pela mente invocálo, a não ser que cressem que ele já lhes preparou algum socorro. Assim, os discípulos em quem Cristo repreendeu a exigüidade da fé, queixavam-se de que estavam a perecer, contudo imploravam-lhe o auxílio [Mt 8.25]. Aliás, tampouco, enquanto os verbera por causa da fé tão ínfima, os exclui do quadro dos seus, nem os inclui no número dos incrédulos; antes, os incita a desvencilhar-se da falha.
Portanto, voltamos a afirmar o que já dissemos um pouco antes: jamais se pode arrancar a raiz da fé do coração piedoso; antes, cravada em seu mais íntimo recesso, aí adere, por mais que pareça inclinar-se sacudida para cá ou para lá: sua luz a tal ponto jamais se extingue ou se deixa sufocar, que não se deixa esconder nem mesmo debaixo de cinza; e, com este exemplo, se evidencia que a Palavra, que é uma semente incorruptível, produz fruto semelhante a si mesma, cujo gérmen nunca fenece nem de todo perece. E isto é tão certo, que os santos jamais encontram maior motivo e ocasião de desespero do que quando sentem, ao julgar pelos acontecimentos, que a mão de Deus se ergue para destruí-los. Contudo, Jó afirma que a esperança lhe haveria de ser estendida, e que se viesse a ser por ele morto, não haveria de deixar, por isso, de esperar nele [Jó 13.15]. Assim é, de fato: a incredulidade não reina nos recessos do coração dos piedosos, mas os assedia de fora; nem os fere mortalmente com seus dardos, mas apenas os molesta, ou, melhor, os golpeia de modo que o ferimento seja curável. Pois a fé, segundo Paulo ensina, nos é por escudo [Ef 6.16]: como anteparo aos dardos, de tal modo lhes sustém o impacto que os desvia totalmente ou, ao menos, os aplaca, para que não nos penetrem às partes vitais. Portanto, quando a fé é assim acometida, é precisamente como se um soldado, de outro modo firme, se visse forçado por violento golpe de lança a mover o pé e ceder um pouco; quando, porém, a própria fé é ferida, é precisamente como se o escudo recebesse do embate alguma quebradura, contudo de modo que não seja traspassado. Ora, a mente piedosa, que sempre se ergue até este ponto, dirá com Davi: “Se eu tiver de andar no meio da sombra da morte, não temerei males, porque tu estás comigo” [Sl 23.4]. Andar na escuridão da morte é sem dúvida apavorante, e seja o que for que aconteça aos fiéis, sem importar o que tenham de firmeza, não sentirão horror extremo. Mas, como se impõe em seu espírito o pensamento de que têm a Deus presente, e que ele cuida de sua salvação, o temor é, ao mesmo tempo, vencido pela confiança. Quantos, porém, como Agostinho1 – e não importa quais sejam os engenhos de guerra –, que contra nós nos assalta o Diabo, uma vez que não se assenhoreia do coração, onde a fé reside, é lançado fora. E assim, se há de julgar-se pelo resultado, os fiéis não só escapam ilesos de todo conflito, de sorte que, renovado o alento, pouco depois se vêem de novo preparados para descer à arena, mas também se cumpre o que João diz em sua primeira Epístola canônica: “Esta é a vitória que vence o mundo: nossa fé” [1Jo 5.4]. Ora, não apenas em uma só batalha, ou em umas poucas, ou contra alguma investida, afirma ele haver nossa fé de ser vencedora, mas é vitoriosa sobre o mundo todo, ainda que seja mil vezes atacada.

João Calvino