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domingo, 7 de outubro de 2018

A ELEIÇÃO É CONFIRMADA PELA VOCAÇÃO DIVINA, MAS OS RÉPROBOS ENGENDRAM PARA SI A JUSTA PERDIÇÃOÀ QUAL FORAM DESTINADOS

A VOCAÇÃO EFICAZ RESULTA DA ELEIÇÃO E PROCEDE DA MERA GRAÇA DIVINA

Mas, para que a matéria se aclare melhor, tem-se de tratar tanto da vocação dos eleitos, quanto da cegueira e do endurecimento dos ímpios. Quanto à primeira parte, realmente já falei algo, refutando o erro daqueles a quem a universalidade das promessas parece nivelar todo o gênero humano. Com efeito, não sem diferenciação, afinal por sua vocação Deus manifesta a eleição, que, de outra sorte, mantém oculta em si mesmo, vocação que, por isso, é lícito chamar propriamente de sua atestação. Ora, “aqueles a quem de antemão conheceu, a esses também predestinou para que se tornassem conformes à imagem de seu Filho; aos que de antemão predestinou, a esses também chamou; aos que chamou, a esses também justificou; aos que justificou, a esses também glorificou” [Rm 8.29, 30]. Embora ao eleger aos seus, já os houvesse o Senhor adotado na posição de filhos, entretanto vemos que não vêm à posse de tão grande bem, a não ser quando são chamados; por outro lado, quando chamados, desfrutam já de certa comunicação de sua eleição. Por essa razão, Paulo chama o Espírito que recebem não somente de “Espírito de adoção” [Rm 8.15], mas também de “selo e penhor da herança futura” [Ef 1.13, 14; também 2Co 1.22; 5.5], porquanto, de fato, por seu testemunho, no coraçãolhes estabelece e sela a certeza da adoção futura. Ora, visto que a pregação do evangelho jorra da fonte da eleição, no entanto, visto que ela é comum também aos réprobos, em si não seria prova sólida. Deus, porém, ensina eficazmente os seus eleitos, para que os conduza à fé, como já citamos de antemão das palavras de Cristo: “Quem procede de Deus, este”, não outro, “vê o Pai” [Jo 6.46]. Igualmente: “Manifestado teu nome aos homens que me deste” [Jo 17.6]. Como diz em outro lugar: “Ninguém pode vir a mim, a não ser que seja trazido por meu Pai” [Jo 6.44], passagem que Agostinho expõe sabiamente, cujas palavras são: “Se, como diz a verdade, todo aquele que aprendeu vem [Jo 6.45], todo aquele que não vem, certamente nem aprendeu. Não se segue, pois, que quem pode vir também venha, a não ser que o haja querido e o haja feito; contudo, todo aquele que aprendeu do Pai não só pode vir, mas também vem, onde já está presente o proveito da possibilidade, a disposição da vontade e o efeito da ação.”
Mais claramente ainda, em outro lugar: “Que significa ‘Todo aquele que ouviu e aprendeu do Pai vem a mim’ [Jo 6.45], senão que não há ninguémque ouça e aprenda do Pai e que não venha a mim? Ora, se todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem, sem dúvida todo aquele que não vem não ouviu do Pai, nem aprendeu, porque, se houvesse ouvido e aprendido, viria. Mui remota é esta escola dos sentidos da carne, na qual o Pai é ouvido e ensinaque se venha ao Filho.” Pouco depois: “Esta graça, que é secretamente conferida aos corações humanos, não é recebida por nenhum coração duro, é conferida para que seja primeiramente extirpada a dureza do coração. Quando, pois, o Pai é ouvido interiormente, ele remove o coração de pedra e dá um coração de carne [Ez 11.19; 36.26]. Assim, realmente os faz filhos da promessa e vasos da misericórdia, que para glória preparou. Por que, pois, não ensina a todos para que venham a Cristo, senão porque a todos aos quais ensina, os ensina em misericórdia; mas, aos que não ensina, não os ensina em juízo, ‘visto que ele se compadece de quem quer, e a quem quer endurece’”? [Rm 9.18]. Logo, aos que Deus elegeu, os designa a si por filhos e se nomeia seu Pai. Ademais, chamando-os, os admite à sua família e os agrega a si mesmo, para que juntamente sejam um. Quando, porém, a vocação se associa à eleição, com isso a Escritura indica suficientemente que nela nada se deve buscar, exceto a graciosa misericórdia de Deus. Pois, se indagarmos a quem ele chama, e por qual razão, responde: aos que elegera. Mas quando se chega à eleição, então só a misericórdia esplende por toda parte. E de fato aqui esta observação de Paulo tem realmente lugar: “Não é de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus usar de compaixão” [Rm 9.16]. E não se deve entender isto – como comumente se entende – estabelecendo uma divisão entre a graça de Deus e a vontade do homem. Porque explicam que o desejo e o esforço do homem por si sós para nada servem se a graça de Deus não os abençoar e fazer prosperar; mas, ainda que sejam assistidos por sua bênção, acrescentam que também têm seu papel em operar a salvação. Prefiro refutar-lhes a cavilação com palavras de Agostinho antes que com as minhas: “Se o Apóstolo não quis dizer outra coisa, senão que não é simplesmente do que quer ou do que corre, mas de o Senhor misericordioso o assistir, será lícito replicar, em contrário, que não é só da misericórdia, a menos que a vontade e a ação do homem a assistam. Se isto é nitidamente ímpio, não duvidemos de que o Apóstolo atribui tudo à misericórdia do Senhor, sem deixar nada para nossa vontade ou nossos esforços.” Estas são as palavras desse santo varão. Tampouco tenho em alguma conta o pobre sofisma que impingem, de que Paulo não teria dito isso, a não ser que houvesse em nós algum esforço e alguma vontade. Porque ele não levou em conta o que há no homem, senão que, vendo que alguns atribuíam uma parte de sua salvação ao seu esforço, simplesmente condena no primeiro membro o erro dos mesmos; e em seguida aplica e imputa totalmente a salvação à misericórdia de Deus. E que outra coisa fazem os profetas senão proclamar perenemente a vocação graciosa de Deus?

João Calvino