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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

À LUZ DE NUMEROSAS PASSAGENS DA ESCRITURA SE EVIDENCIA QUE O CORPO DA RESSURREIÇÃO É O MESMO DE QUE SOMOS DOTADOS, NÃO UM NOVO CORPO

Igualmente monstruoso é o erro daqueles que imaginam que as almas não receberão os corpos de que ora são revestidas; mas, antes, serão providas de outros e novos corpos. Aliás, extremamente fútil foi a razão dos maniqueus, ou, seja, que mui longe está de ser congruente que a carne, que é imunda, ressurja. É como se as almas não fossem manchadas de nenhuma imundícia, as quais, no entanto, não excluíam da esperança da vida celestial! Portanto, eram exatamente como se dissessem que não pode ser divinamente purificado o que foi infectado pela sordidez do pecado. Neste sentido, deixo de considerar agora aquele desvario de que a carne é imunda por natureza, porquanto foi criada pelo Diabo. Estou apenas mostrando que, seja o que for que ora há em nós indigno do céu, não impede a ressurreição. Com efeito, em primeiro plano, quando Paulo ordena que os fiéis se purifiquem de toda impureza da carne e do espírito [2Co 7.1], daí segue o juízo que pronuncia em outro lugar: que “cada um receba, através do corpo, ou o bem, ou o mal” [2Co 5.10]. Com o que está de acordo o que escreve aos coríntios: “a vida de Jesus Cristo se manifesta em nossa carne mortal” [2Co 4.11]. Por essa razão, em outro lugar, ora não menos para que Deus conserve os corpos íntegros até o dia de Cristo, juntamente com as almas e espíritos [1Ts 5.23]. Nem é de admirar, pois seria um total absurdo que os corpos que Deus consagrou como seu templo se corrompam sem a esperança da ressurreição [1Co 3.16; 6.19]. E, ainda mais, por que são também membros de Cristo [1Co 6.15]; porque Deus preceitua que todas suas partes sejam santificadas para ele; e que seu nome seja exaltado com sua língua, e que os homens ergam ao céu suas mãos limpas e puras [1Tm 2.8], e que sejam instrumentos para oferecer-lhe sacrifícios [Rm 12.1]? Portanto, que insânia é essa, reduzir o homem mortal a pó, sem qualquer esperança de restauração, a parte do homem que o Juiz celestial digna de tão eminente honra? Paulo, de modo semelhante, quando nos exorta a levar o Senhor tanto no corpo quanto na alma, uma vez que ambos são de Deus, certamente não permite que seja condenado à eterna corrupção o que Deus consagrou para si como santo [1Co 6.19, 20]. Realmente, não há na Escritura artigo de fé mais claro e nítido do que este: que ressuscitaremos com a mesma carne que possuímos.386 Paulo afirma que, “convém que o que é corruptível se revista de incorruptibilidade; e que o que é mortal se revista de imortalidade” [1Co 15.53]. Se Deus formasse novos corpos, onde estaria esta mudança de qualidade? Se ele dissesse que convém que sejamos renovados, é provável que a expressão ambígua propiciasse ocasião à cavilação; ora, quando, com o dedo a apontar para os corpos com que fomos circundados, lhes promete incorrupção, claramente nega que Deus haverá de formar outro corpo novo. “Pelo contrário”, diz Tertuliano, “ele não podia falar mais expressamente, senão que tivesse nas mãos sua própria pele.” Por mais que discorram, não poderão livrar-se de ser condenados pelo que noutro lugar afirma, quando Paulo, para provar que Cristo será o juiz do mundo, cita em outro lugar o testemunho de Isaías: “Por mim mesmo tenho jurado ... diante de mim se dobrará todo joelho” [Is 45.23; Rm 14.11], quando denuncia abertamente que aqueles mesmos a quem fala serão chamados a prestar contas da vida, o que não procederia, se diante do tribunal se apresentassem corpos novos. Ademais, nas palavras de Daniel não há nada de ambíguo: “E muitos dos que dormem no pó ressuscitarão, uns para a vida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno” [Dn 12.2], quando Deus não evoca dos quatro elementos matéria nova para plasmar homens, mas, antes, dos sepulcros evoca os mortos. A própria razão o confirma. Ora, se a morte, que tem origem na queda do homem, é acidental, a restauração que Cristo propiciou diz respeito a esse mesmo corpo que começou a ser mortal. Obviamente, quando a ressurreição é afirmada por Paulo, os atenienses galhofam [At 17.32], é lícito daí concluir de que natureza foi sua pregação, e só essa galhofa vale não pouco para confirmar-nos a fé. É também digna de ser observada a sentença de Cristo: “Não temais aos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; ao contrário, temei aquele que pode lançar na Gehena de fogo tanto a alma quanto o corpo” [Mt 10.28]. Pois nem mesmo haveria motivo para temer, a menos que o corpo que ora possuímos fosse sujeito ao suplício. Aliás, tampouco é obscura outra sentença do mesmo Cristo: “A hora vem na qual todos os que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho de Deus e sairão. Os que fizeram o bem,para a ressurreição da vida; os que praticaram o mal, porém, para a ressurreição do juízo” [Jo 5.28, 29]. Porventura diremos que as almas descansam nos sepulcros, de sorte que daí ouçama Cristo, e não antes que, ante sua ordem, os corpos retornarão ao vigor do qual haviam decaído? Ademais, se haveremos de ser dotados de corpos novos, onde a conformidade da Cabeça com seus membros? Porventura Cristo ressuscitou plasmando um corpo novo para si? Pelo contrário, como havia predito: “Destruí este templo e em três dias o reerguerei” [Jo 2.19]. O corpo mortal que antes possuía, o recebeu de novo, pois de mui pouco nos serviria, se em seu lugar fosse posto outro novo, e aquele que foi oferecido em sacrifício expiatório por nós teria sido destruído. Deve-se manter também esta associação que o Apóstolo proclama: nós ressurgirmos, porque Cristo ressurgiu, porquanto nada menos provável é que nossa carne seja privada da ressurreição de Cristo, na qual levamos em derredor a mortificação do próprio Cristo [1Co 15.20-22; 2Co 4.10, 11], o que, na verdade, se fez manifesto por destacado exemplo: quando Cristo ressurgiu, muitos corpos de santos saíram dos sepulcros [Mt 27.52]. Ora, tampouco se pode negar que isto foi um prelúdio, ou, melhor, o penhor da ressurreição final que esperamos, a qual outrora já subsistia em Enoque e Elias, a quem Tertuliano chama de candidatos da ressurreição; porque, subtraídos à corrupção no corpo e na alma, foram recebidos à guarda de Deus.

João Calvino