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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

INSTRUMENTOS DA IRA JUSTA DE DEUS, OS RÉPROBOS SE FAZEM AINDA MAIS ENDURECIDOS COM A PREGAÇÃO DA PALAVRA

Portanto, por que Deus outorga a uns a misericórdia, enquanto deseja preterir a outros? Quanto àqueles, Lucas fornece a razão: “Porque foram ordenados para a vida” [At 13.48]. Quanto a estes, portanto, o que haveremos de sentir, senão porque “são vasos de ira para desonra?” [Rm 9.21, 22]. Por isso, não nos acanhamos falar com Agostinho: “Deus poderia”, diz ele, “converter para o bem a vontade dos maus, porque ele é onipotente. Obviamente que poderia. Então, por que não o faz? Porque não quis. Porque não quis, está nele.” Ora, não devemos saber mais do que convém, e isto é muito mais satisfatório que tergiversar com Crisóstomo, que Deus atrai a si “aquele que quer e estende a mão”, de sorte que a distinção não pareça situada no juízo de Deus, mas tão-só no arbítrio dos homens. De fato, tão longe está de ser posto na mera vontade do homem, que podemos acrescentar que mesmo os piedosos, e os que temem a Deus, necessitam desta inspiração especial do Espírito. Lídia, a vendedora de púrpura, temia a Deus, e no entanto se fez necessário que seu coração fosse aberto para que desse atenção ao ensino de Paulo e nele colhesse proveito [At 16.14]. Isto não foi dito em referência a uma só mulher, mas para que saibamos que o avanço de cada um, na piedade, é a obra secreta do Espírito. Certamente não se pode pôr em dúvida que o Senhor envia sua Palavra a muitos cuja cegueira quer que aumente. Pois, a que propósito envia tantas ordens a Faraó? Porventura porque esperava que ele se abrandasse com embaixadas mais freqüentemente repetidas? Muito pelo contrário, antes que começasse, não apenas sabia, mas até predissera o resultado. “Vai”, dizia ele a Moisés, “e declara-lhes minha vontade; eu, porém, lhe endurecerei o coração para que não obedeça” [Ex 4.19, 21]. Assim, quando suscita a Ezequiel, o avisa de antemão que o está enviando a um povo rebelde e contumaz [Ez 2.3], para que não se sinta perplexo caso descubra que está cantando a surdos [Ez 12.2]. Assim, prediz a Jeremias que seu ensino haveria de ser como fogo, para que ao povo destrua e dissipe à semelhança da palha [Jr 1.10; 5.14]. Mas, impressiona ainda mais a profecia de Isaías, pois ele é assim enviado pelo Senhor: “Vai e diz aos filhos de Israel: Ouvi, com efeito, e não entendais; vede, de fato, e não saibais. Obstina o coração deste povo, e faz-lhe pesados os ouvidos, e embaça-lhe os olhos, para que, por acaso, não veja com seus olhos, e entenda com o coração, de sorte que, convertido, seja sarado” [Is 6.9.10]. Eis que lhes dirige a voz, mas para que se façam mais surdos; uma luz lhes acende, mas para que se tornem mais cegos; ministra-lhes ensino, mas para que por ele se façam ainda mais estultos; aplica remédio, todavia, para que não sejam curados. E, acrescentando esta profecia, João sentencia que os judeus não puderam crer no ensino de Cristo porque esta maldição divina os impediria [Jo 12.39, 40]. Tampouco se pode pôr em dúvida que a quem Deus não quer iluminar, lhes propõe sua doutrina cheia de enigmas, a fim de que não lhes aproveite, e caiam em maior embotamento e extravio. Pois Cristo dá testemunho de que por isso só aos Apóstolos explicava as parábolas nas quais havia falado diante da multidão: porque “a estes fora dado conhecer os mistérios do reino de Deus, mas não igualmente à plebe” [Mt 13.11]. O que o Senhor pretende, dirás, ensinando aqueles de quem cuida não seja entendido? Considera donde provém a falha e deixarás de indagar. Ora, qualquer que seja a obscuridade que haja na Palavra, no entanto sempre há bastante de luz para convencer a consciência dos ímpios.

João Calvino