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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

IMPORTÂNCIA ÚNICA DE NOSSA RESSURREIÇÃO, O RESSURGIMENTO DO CORPO GLORIOSO, DO QUAL A RESSURREIÇÃO DE CRISTO É O PENHOR, PROTÓTIPO E GARANTIA, SUSTENTADA POR MUITAS E INFALÍVEIS PROVAS

A própria importância da matéria aguçará nosso fervor. Pois Paulo não disputa sem razão, dizendo que, “se não houver ressurreição dos mortos, o evangelho ficará totalmente sem efeito” [1Co 15.13, 14], porquanto nossa condição seria mais miserável que a de outros mortais [1Co 15.19], visto que, expostos aos ódios e vitupérios de muitos, nos acharmos em perigo a toda e cada hora [1Co 15.30], mais até, “somos como ovelhas destinadas ao matadouro” [Sl 44.22; Rm 8.36], e por isso cairia por terra sua autoridade, não apenas em uma parte, mas em seu todo, a que abarca não só a adoção, mas também a efetuação de nossa salvação. E assim estejamos mui atentos em coisa que tanto nos importa, para que o prolongado do tempo não nos canse nem nos faça desmaiar. Com este propósito também retardei para este lugar o que se haveria de tratar sucintamente a respeito desta matéria, para que os leitores aprendam, quando houver recebido a Cristo, Autor da perfeita salvação, possam subir mais alto e saibam que ele está vestido de celeste imortalidade e glória, para que todo o corpo se faça conforme à Cabeça, como, ademais, em sua pessoa, a cada passo, o Espírito Santo propõe exemplo da ressurreição. É coisa bem difícil de crer que os corpos consumidos pela podridão hajam de ressuscitar no fim dos tempos. Portanto, quando muitos dentre os filósofos professavam que as almas são imortais, a ressurreição da carne foi aprovada por poucos; daí, embora não houvesse nenhuma escusa, contudo, somos daí avisados que é coisa demasiado árdua para que arraste a si os pensamentos dos homens. Para que a fé supere a tão grande obstáculo, a Escritura vem em nosso socorro de duas maneiras: uma está na semelhança de Cristo; a outra, porém, na onipotência de Deus. Daí, sempre que se trata da ressurreição, a imagem de Cristo vem a lume, o qual, na natureza que de nós assumira, de tal modo consumou o curso da vida mortal que agora, adquirida a imortalidade, veio a ser o penhor de nossa ressurreição futura. Ora, nas misérias de que estamos sitiados, “em nossa carne levamos em derredor sua mortificação, para que sua vida se manifeste em nós” [2Co 4.10]. E não é permissível separá-lo de nós, e de fato nem é possível, sem que ele seja dividido.
Donde esse arrazoado de Paulo: “Se os mortos não ressuscitam, tampouco Cristo ressuscitou” [1Co 15.13]; porque de fato ele tem como irrefutável este principio: que Cristo não se sujeitou à morte, ou conquistou a vitória sobre a morte, ressuscitando-o, por sua própria causa; pelo contrário, que começou-se na Cabeça o que é necessário que se cumpra em todos os membros, segundo o grau e a ordem de cada um. Porque não era possível que em tudo fossem iguais a ele. No Salmo está escrito: “Não permitirás que teu santo veja a corrupção” [Sl 16.10; At 2.27]. Ainda que nos caiba uma porção desta confiança, segundo a medida que se nos outorga, entretanto, o pleno efeito apareceu somente em Cristo, que, imune de toda putrefação, recebeu de volta um corpo perfeito. Ora, a fim de que não nos seja ambígua a comunhão da bem-aventurada ressurreição com Cristo, de sorte que estejamos contentes com este penhor, Paulo confirma eloqüentemente que, por isso, Cristo está assentado nos céus [Ef 1.20], e como juiz virá no dia final, para que a seu corpo glorioso conforme nosso corpo vil e abjeto [Fp 2.20, 21]. Em outro lugar [Cl 3.4] Paulo também ensina que Deus não ressuscitou da morte ao Filho para que mostrasse um exemplo único de seu poder, mas para que exiba para conosco, os fiéis, a mesma operação do Espírito, a quem, por isso, chama vida, quando em nós habita, porque foi dado para este fim: que vivifique em nós o que é mortal [Rm 8.11]. Estou a restringir, com parcimônia, coisas que não só poderiam ser tratadas mais extensamente, mas até merecem ser mais esplendidamente adornadas. E no entanto confio que em minhas poucas palavras os leitores piedosos encontrem bastante material que seja suficiente para que sua fé seja edificada. Portanto, Cristo ressuscitou para que nos tivesse como companheiros da vida futura. Ele ressuscitou pelo poder do Pai, enquanto era o Cabeça da Igreja, da qual de modo nenhum permite que seja separado. Ressuscitou pelo poder do Espírito que, com ele, exerce o ofício comum de vivificar. Enfim, ressuscitou para que fosse “a ressurreição e a vida” [Jo 11.25]. Como, porém, dissemos que neste espelho a imagem viva da ressurreição nos é clara, assim ela nos é sólido fundamento para suster-nos o ânimo, contanto que não nos entediemos ou nos aborreçamos de uma demora mais longa, uma vez que não é apanágio nosso de medir de próprio arbítrio os momentos dos tempos, mas, ao contrário, esperar pacientemente até que, de acordo com sua oportunidade, Deus instaure seu reino. A isto visa esta exortação de Paulo: “Cristo, as primícias; então, os que são de Cristo, cada um em sua ordem [1Co 15.23]. Mas, para que não se movesse alguma dúvida acerca da ressurreição de Cristo, na qual está fundamentada a ressurreição de todos nós, vemos de quantos e quão variados modos ele no-la comprovou. Rir-se-ão homens escarnecedores como se a história referida pelos evangelistas fosse brincadeira de criança. Pois, de que valor será o anúncio que proferem mulherinhas apavoradas, e então o confirmam discípulos quase desfalecidos de medo? Por que Cristo não exibe antes, no meio do templo e na praça pública, os insignes troféus de sua vitória? Por que não se posta temível em aparênciadiante de Pilatos? Por que não se prova redivivo também aos sacerdotes e a toda Jerusalém? Em suma, dirão estes homens profanos e sem o temor de Deus, que de fato são testemunhas idôneas aqueles a quem assim escolhe. Replico: embora as origens fossem mui débeis, tudo isso foi disposto pela admirável providência de Deus; de tal sorte que aqueles que pouco antes se encontravam sufocados de medo, o sepulcro os arrebataria, em parte o amor de Cristo e o zelo da piedade, em parte sua incredulidade, não apenas para que fossem testemunhas oculares do fato, mas também para que ouvissem o mesmo dos anjos que com os olhos contemplavam. Como nos seria suspeita a fidedignidade daqueles que julgaram ser uma fábula o que ouviram das mulheres [Lc 24.11], até que foram conduzidos à realidade tangível? O povo todo, porém, e o próprio governador, depois que foram mais do que suficientemente convencidos, não é de admirar que fossem privados tanto da visão de Cristo, tanto quanto de outros sinais. O sepulcro é selado; vigias lhe montam guarda [Mt 27.66]; ao terceiro dia não se acha nele o corpo [Mt 28.6; Mc 16.8; Lc 24.3]; corrompidos por dinheiro, os soldados espalham o boato de que ele fora levado pelos discípulos [Mt 28.12, 13, 15]. Como se realmente houvesse a possibilidade de reunir-se grande contingente, ou tivessem armas à disposição, ou, inclusive, fossem adestrados para intentar algo desse vulto? Ora, se os soldados não tinham bastante ânimo para repeli-los, por que não os perseguiram, para que, ajudados pelo concurso do povo, prendessem a alguns? Portanto, o fato é que, com seu próprio sinete, Pilatos selou a ressurreição de Cristo, e aqueles que foram postados junto ao sepulcro como guardas, calando-se ou mentindo, se fizeram arautos da própria ressurreição. Entrementes, retumbou a voz dos anjos: “Ressurgiu; não está aqui [Mt 28.6; Mc 16.6; Lc 24.6]. O celeste esplendor de que se revestiam mostrou claramente que não eram homens, mas anjos. Depois disto o próprio Cristo, se alguma dúvida ainda persistia, ele a dissipou. Viram-no os discípulos não só uma vez, e inclusive lhe apalparam os pés e as mãos [Lc 24.40; Jo 20.27], e sua incredulidade foi pouco proveitosa para confirmar-nos a fé. No meio deles, ele discorreu acerca dos mistérios do reino de Deus [At 1.3]; por fim, à vista deles, subiuao céu [At 1.9]. Esta visão foi exibida não só aos onze apóstolos, mas “ele apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez”[1Co 15.6]. Agora, enviado o Espirito Santo, com isso deu segura prova não só de sua vida, mas também de sua suprema soberania, como havia predito: “Convém-vos que eu vá; do contrário, o Espírito Santo não virá” [Jo 16.7]. Ademais, Paulo também foi prostrado no caminho, não pelo poder de um morto, mas, sim, sentiu que Aquele a quem atacava era possuído de poder supremo [At 9.4, 5]. Ele apareceu a Estêvão para outro fim: para que vencesse o temor da morte com a certeza da vida [At 7. 55, 56]. Não querer dar fé a tantos e tão autênticos testemunhos não é marca de desconfiança, mas de obstinação depravada e, sobretudo, insana.

João Calvino