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domingo, 7 de outubro de 2018

OS ELEITOS, ANTES DE SUA VOCAÇÃO, VIVEM COMO OS NÃO-ELEITOS, CONTUDO, SÃO POR DEUS GUARDADOS DA PERDIÇÃO TOTAL, VISTO QUE NELES NÃO SUBSISTE UMA COMO QUE SEMENTE DA ELEIÇÃO

De fato, os eleitos não são agregados ao redil de Cristo mediante a vocação, nem imediatamente desde a madre, nem todos ao mesmo tempo, mas como pareceu bem a Deus administrar-lhes sua graça. Antes, porém, que sejam congregados àquele Sumo Pastor, vagueiam dispersos no deserto comum a todos, não diferindo deles em nada, senão que são pela singular misericórdia de Deus protegidos para que não se lancem ao precipício último da morte. Portanto, se volveres para eles o olhar, verás a progênie de Adão, que exala a corrupção comum da massa. O fato de às vezes serem levados a extrema e desesperada impiedade, isto não ocorre mercê de alguma bondade neles ingênita, mas porque os olhos de Deus vela pela salvação deles e sua mão lhes foi estendida. Ora, aqueles que sonham que desde o próprio nascimento lhes foi inserida no coração não sei que semente da eleição, em virtude da qual são sempre inclinados à piedade e ao temor de Deus, não contam com o apoio da autoridade da Escritura e a própria experiência os convence disso. De fato, trazem à baila uns poucos exemplos, dos quais tentam comprovar que os eleitos, também antes de sua iluminação, não foram estranhos à religião: Paulo, em seu farisaísmo, viveu de forma irrepreensível [Fp 3.5, 6]; Cornélio foi aceito por Deus, mercê de suas esmolas e orações [At 10.2]; e assim por diante. Quanto a Paulo, admitimos a alegação; em Cornélio dizemos que estão enganados, pois é evidente que já então ele fora iluminado e regenerado, de sorte que nada lhe faltasse, exceto a clara revelação do evangelho. Mas, de fato, o que, afinal, esperam granjear com estes bem raros exemplos? Que porventura todos os eleitos sempre foram dotados do espírito de piedade? Não mais do que se alguém, uma vez demonstrada a integridade de Aristides, de Sócrates, de Xenócrates, de Cipião, de Cúrio, de Camilo, dentre outros, daí conclua que todos os que são deixados na cegueira da idolatria têm sido zelosos de santidade e de probidade. Mas, além do fato de que seu argumento nada valha, a Escritura os contradiz abertamente em muitas passagens. Porque o estado e condição em que os efésios, segundo Paulo, viveram antes de ser regenerados, não mostra um só grão desta semente: “E vos vivificou”, diz ele, “estando vós mortos em delitos e pecados, nos quais andastes, conforme os costumes deste mundo, segundo o príncipe do ar, que agora opera nos filhos contumazes, entre os quais também nós todos vivíamos outrora nas concupiscências de nossa carne, fazendo o que era agradável à carne e à mente. E éramos por natureza filhos da ira, assim como também os demais” [Ef 2.1-3]. Igualmente: “Lembrai-vos de que outrora vivíeis sem esperança e estáveis sem Deus no mundo”[Ef 2.12]. Ainda: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como filhos da luz” [Ef 5.8]. Mas é possível que alguém diga que essas coisas têm a ver com a ignorância do Deus verdadeiro, quando não negam que os eleitos foram serem retidos, antes de serem chamados, ainda que isto seria impudente cavilação, quando Paulo conclui dessa passagem que já não mais se haja ou de mentir [Ef 4.25] ou de furtar [Ef 4.28].
No entanto, o que responderão às outras passagens, como aquela na Epístola aos Coríntios, onde, depois de declarar que “nem fornicários, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, serão herdeiros do reino de Deus” [1Co 6.9, 10], acrescenta imediatamente que nas mesmas abominações viveram enredados antes de conhecerem a Cristo; mas que agora, estão não só lavados por seu sangue, mas também liberados pelo Espírito [1Co 6.11]. Igualmente aquela na Epístola aos Romanos: “Da mesma forma que oferecestes vossos membros como servos da imundície e da iniqüidade para a iniqüidade, dedicai-os agora ao serviço da justiça. Pois que fruto tivestes dessas coisas das quais agora, com razão, vos envergonhais?” [Rm 6.19-21] etc.

João Calvino