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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

EMBORA A RESSURREIÇÃO SEJA NEGADA POR MUITOS, OS PRÓPRIOS RITOS FÚNEBRES DOS PAGÃOS A ATESTAM; TAMPOUCO É PROCEDENTE A CONCEPÇÃO DOS QUILIASTAS OU DOS QUE REJEITAM AS PENAS ETERNAS

Mas, embora neste empenho conviesse que as mentes humanas se ocupassem assiduamente, entretanto, como se quisesse de deliberado intento suprimir toda lembrança da ressurreição, à morte denominaram o fim de todas as coisas e a extinção do homem. Ora, por certo que Salomão está falando da opinião comum e recebida, quando diz que “melhor é um cão vivo do que um leão morto” [Ec 9.4]. E, em outro lugar: “Quem sabe se o fôlego do homem vai para cima, e que o fôlego dos animais vai para baixo da terra?” [Ec 3.21]. Em todos os séculos, porém, tem grassado este embotamento bestial, e até na própria Igreja irrompeu-se, por isso os saduceus de outrora ousaram professar abertamente que não há nenhuma ressurreição [M 22.23; Mc 12.18; Lc 20.27; At 38.8]; mais ainda, que as almas são mortais. No entanto, para que ninguém abonasse esta crassa ignorância, à luz do próprio destino da natureza, os incrédulos sempre tiveram diante dos olhos uma representação da ressurreição. Pois, a que fim servia o sagrado e inviolável costume de sepultar os mortos, senão que fosse o penhor de uma vida? Tampouco procede objetar-se que isso nasceu do erro, porquanto não só entre os santos patriarcas sempre vigorou o ritual de sepultamento, mas também Deus quis que o mesmo costume subsistisse entre os gentios, para que a representação da ressurreição assim projetada os despertasse de seu torpor. Mas, ainda que tal ritual carecesse de proveito, contudo, nos é útil se atentarmos sabiamente para seu fim, porque não pequena refutação de sua incredulidade que todos eles, a um tempo, hajam professado o que ninguém cria.
Com efeito, Satanás não apenas embotou os sentidos dos homens para que, juntamente com os corpos, sepultassem a lembrança da ressurreição, mas que também se empenhou em corromper esta parte da doutrina com invenções várias, para que, afinal, se extinguisse. Deixo de considerar o fato de que já no tempo de Paulo Satanás começou a pervertê-la; mas, pouco depois, seguiram-se os quiliastas, que limitaram o reinado de Cristo a mil anos. E, em verdade, a ficção desses é por demais pueril para que tenha necessidade de refutação ou seja ela digna. Tampouco Apocalipse lhes empresta suporte, do qual certamente tiraram pretexto para seu erro, quando no número milenário [Ap 20.4] não se trata da eterna bem-aventurança da Igreja, mas apenas de agitações várias que aguardavam a Igreja a militar na terra. Além disso, toda a Escritura proclama que jamais haverá fim para a bem-aventurança dos eleitos, nem para suplício dos réprobos [Mt 25.41, 46]. Com efeito, de todas as coisas que não só nos fogem à visão, mas até superam em muito o alcance de nossa mente, ou se há de buscar fé nos oráculos infalíveis de Deus, ou ela tem de ser rejeitada inteiramente. Aqueles que prescrevem aos filhos de Deus mil anos para usufruírem a herança da vida futura, não se apercebem de quão afronta lançam tanto a Cristo quanto a seu reino. Porque, se não há de revestir se de imortalidade, segue-se daí que nem o próprio Cristo, em cuja glória haverão de ser transformados, foi recebido na glória imortal [1Co 15. 13-16]; se sua bem aventurança há de ter fim, então o reino de Cristo, a cuja solidez se arrima essa bem aventurança, é temporária. Por fim, ou são extremamente ignorantes de todas as coisas divinas, ou diligenciam em tortuosa malignidade por afastar toda a graça de Deus e o poder de Cristo, dos quais a consumação de outro modo não se estabelece, a não ser que, obliterado o pecado, e tragada a morte, em plenitude se implante a vida eterna. Seu temor de atribuir a Deus uma excessiva crueldade afirmando que os réprobos já foram predestinados a tormentos eternos, é um desvario tal, que os próprios cegos o vêem. Grave injúria cometeria Deus privando e desterrando de seu reino aos que se fizeram indignos dele por sua ingratidão! Mas, replicarão, seus pecados são temporais. Admito-o, mas a majestade de Deus, e também sua justiça, que em pecado violaram, é eterna. Logo, é muito justo que a lembrança de sua iniqüidade não pereça. Mas, insistirão, desta forma a pena excederá a medida do delito. Esta, porém, é uma blasfêmia que não se pode tolerar, enquanto se estima tão mesquinhamente a majestade de Deus, não a estimando mais que a condenação de sua alma! Mas, deixemos fora de consideração esses paroleiros, para que não pareçamos, em contrário ao que dissemos previamente, julgar dignos de refutação seus desvarios.

João  Calvino