Total de visualizações de página

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

IMPROCEDÊNCIA DA TESE DE QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO É ABSURDA, CHOCANTE E ATÉ MESMO PERNICIOSA

Confesso que na questão da predestinação homens profanos agarram inopinadamente ao que carpam, ou cavilem, ou invectivem, ou escarneçam. Mas se a insolência desses nos atemoriza, terão de calar-se mesmo os dogmas capitais da fé, dos quais quase nenhum deixam incólume de blasfêmia, ou eles próprios, ou seus similares. A mente refratária não se assanhará menos insolentemente quando ouvir que na essência de Deus subsistem três pessoas, do que se ouvir que Deus previu o que haveria de acontecer em relação ao homem quando o criasse. Tampouco conterão as gargalhadas quando vierem a saber que pouco mais de cinco mil anos transcorreu desde a criação do mundo, pois indagarão por que o poder de Deus permaneceu ocioso e adormecido por tempo tão longo. Enfim, não será possível afirmar nada do que não se riam e façam troça. Para reprimirmos a estes sacrilégios, porventura é preciso calar a respeito da divindade do Filho e do Espírito, porventura deixar em silencia a criação do mundo? Contudo, de fato mais poderosa é a verdade de Deus, tanto neste aspecto como nos demais, para que recue ante a maledicência dos ímpios, como também vigorosamente contende Agostinho no pequeno tratado De Bono Perseverantiae [Do Bem (ou: Do Bom) da Perseverança]. Ora, vemos que os falsos apóstolos, ao infamarem e incriminarem a veraz doutrina de Paulo, não puderam fazer com que ele se envergonhasse dela. Quanto ao que replicam alguns, de que a doutrina é mui perigosa, inclusive para os próprios fiéis, e porque é contrária às exortações, visto que as lança por terra, e porque revolve e faz desfalecer o coração dos homens, tudo isso que alegam é fútil. Por estas causas, Agostinho não dissimula estar acostumado a ser censurado por pregar a predestinação com extrema franqueza, mas, porque lhe era fácil, refuta a acusação sobejamente. Nós, porém, visto que neste ponto são introduzidos muitos e variados absurdos, preferimos conservar cada um para ser dirimido em seu devido lugar. Desejo alcançar junto a eles apenas isto, em geral: não perscrutemos as coisas que o Senhor deixou recônditas em secreto; não negligenciemos as que pôs a descoberto, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra. Ora, também isso disse Agostinho318 judiciosamente, a saber, que podemos seguir a Escritura com segurança, a qual anda como uma criança condicionada ao passo materno, para que a fraqueza não nos desampare. No entanto, os que são tão cautos ou timoratos que desejam ver a predestinação sepultada, para que não conturbe as almas fracas, com que pretexto, afinal, indago eu, cobrirão sua arrogância, quando, indiretamente, acusam a Deus falsamente de estulta irreflexão, como se não pudesse prever o perigo, a qual eles, com sua prudência, acreditam que vão evitar? Portanto, tantos quantos rotulam a doutrina da predestinação como sendo odiosa injuriam a Deus abertamente, como se inadvertidamente se lhe houvesse escapado de manifestar algo que não pode deixar de ser danoso à Igreja.

João Calvino