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sábado, 22 de setembro de 2018

A CONSTÂNCIA NA ORAÇÃO, QUE É INDISPENSÁVEL A TODO TEMPO E EM TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS, AINDA QUE EM GRAU DIFERENTE, É SEMPRE RESPALDADA EM SINCERIDADE E ARREPENDIMENTO CONTRITO

Se alguém objete que não somos instados a orar sempre com igual necessidade, isso admito, sem dúvida. E esta distinção nos é ensinada por Tiago com muito proveito: “Há entre vós alguém contristado? Ore. Aquele que está alegre, cante” [Tg 5.13]. Portanto, o próprio senso comum dita que, uma vez que somos demasiado indolentes, conforme a ocasião o exige, somos mais agudamente pungidos por Deus a orar ansiosamente. E Davi chama a este “o tempo oportuno” [Sl 32.6], porque, como ensina em muitos outros lugares, quanto mais duramente nos premem as inquietações, os incômodos, os temores e outras espécies de provações, como se Deus nos estivesse chamando a si, mais livre se lhe patenteia o acesso. Ao mesmo tempo, não menos verdadeira é esse apelo de Paulo, de que se deve orar a todo tempo [Ef 6.18; 1Ts 5.17], porquanto, por mais que do ditame de nosso entendimento as coisas fluam prosperamente, e de toda parte nos circunde motivo de alegria, entretanto, não há instante algum de tempo em que nossa indigência não nos não exorte a orar. Tem alguém vinho e trigo em abundância. Uma vez que não pode usufruir de um bocado de pão, a não ser pela constante graça de Deus, adegas ou celeiros não impedirão que suplique seu pão de cada dia. Ora, se refletirmos quantos perigos ameacem a cada momento, o próprio medo ensinará que não há tempo algum em que não tenhamos extrema necessidade de orar. Isto, contudo, é possível reconhecer melhor nas questões espirituais. Pois quando tantos pecados de que estamos cônscios nos permitirão quedar-nos seguros, que não hajamos de pedir perdão, suplicemente, não apenas da culpa, mas também da pena? Quando as tentações nos concedem tréguas, como não nos apressaríamos ao socorro? Além disso, o zelo do reino de Deus e de sua glória assim nos deve arrebatar a si, não intermitentemente, mas, antes, constantemente, que sempre nos permaneça a mesma oportunidade de oração. Portanto, não em vão tantas vezes se nos preceitua a constância de orar. Não estou ainda falando da perseverança na oração, da qual se fará menção mais adiante; a Escritura, porém, exortando a orar constantemente [1Ts 5.17], condena nossa indolência, porque não sentimos quão necessária nos é esta diligência e assiduidade. Por esta regra é barrada da oração, aliás, é para longe afastada a hipocrisia e a argúcia de mentir a Deus. Deus promete que “estará perto de todos os que o invocarem em verdade” [Sl 145.18], e declara que o haverão de achar os que o buscarem de todo o coração [Jr 29.13]. Por isso, os que se deleitam em sua sordidez de modo algum a isso aspiram. Portanto, a oração legítima requer arrependimento. Donde esse lugar comum nas Escrituras: que Deus não ouve a celerados [Jo 9.31], e as preces deles lhe são execráveis, assim como também os sacrifícios [Pv 15.8; 21.27; 28.9; Is 1.15], porquanto é justo que os que fecharem o coração também fecham os ouvidos de Deus, nem os que, por sua própria dureza, lhe provocam o rigor sentem que Deus é flexível. Em Isaías, Deus ameaça nestes termos: “Ainda que multipliqueis vossas súplicas, não darei ouvidos, pois que vossas mãos estão cheias de sangue” [Is 1.15]. Igualmente, em Jeremias: “Clamei, e se recusaram a ouvir; clamarão eles, por sua vez, e não darei ouvidos” [Jr 11.7, 8, 11], pois que considera como sumo ultrajeque os réprobos desdenham de seu pacto, que profanem seu sacro nome por toda a vida. Do quê em Isaías se queixa que, embora os judeus se aproximem dele com os lábios, seu coração está mui distanciado dele” [Is 29.13]. Por certo que ele não restringe isto somente às preces; antes, assevera que abomina a dissimulação em todas e quaisquer partes de seu culto. A isto se aplica essa declaração de Tiago: “Vós pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para que o gasteis em vossos deleites” [Tg 4.13]. É verdadeiro de fato de que, como de novo o veremos pouco adiante, as preces que derramam não se arrimam com a dignidade dos piedosos. Contudo, a ponderação de João não é supérflua: “Se pedirmos algo, dele o receberemos, porque guardamos seus preceitos” [1Jo3.22]; enquanto uma consciência má nos fecha a porta. Do quê se segue que nem oram retamente, nem são ouvidos, senão os sinceros adoradores de Deus. Portanto, quem quer que se disponha a orar, que se arrependa de seus pecados e se revista da pessoa e afeto de um pobre que vai de porta em porta; o que ninguém poderá fazer sem quebrantamento.

João Calvino