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sábado, 22 de setembro de 2018

A LIBERDADE CRISTÃ EM RELAÇÃO AOS DOIS REINOS: O ESPIRITUAL E O TEMPORAL, AOS QUAIS O HOMEM É JURISDICIONADO

 no homem um regime duplo: um, o espiritual, pelo qual a consciência é instruída à piedade e ao culto de Deus; o outro, o político, pelo qual o homem é educado nos deveres de humanidade e civilidade que se têm de observar entre os homens. Estes dois regimes costumam ser chamados, geralmente, jurisdição espiritual e jurisdição temporal, designações não impróprias, com as quais se quer significar que aquela primeira modalidade de regime concerne à vida da alma; esta segunda, porém, diz respeito àquelas coisas que são da presente vida, na verdade não apenas ao alimentar-se, ou ao vestir-se, mas também ao prescrever leis mercê das quais o homem haja de viver a vida entre os homens santa, honrada e moderadamente. Ora, aquela tem morada na mente interior; esta, porém, regula apenas os costumes externos. Permita-se-nos chamar um o reino espiritual, o outro, o reino político. Mas, estes dois reinos, como os dividimos, devem ser sempre examinados separadamente, um a um; e enquanto se considera um, importa desviar-se e abstrair-se a mente da cogitação do outro. Pois há no homem como que dois mundos, aos quais podem presidir não só reis distintos, mas também leis diversas. Com esta distinção acontecerá que não introduzamos indevidamente à ordem política o que o evangelho ensina a respeito da liberdade espiritual, como se, no que tange ao regime externo, os cristãos estivessem menos sujeitos às leis humanas, porque sua consciência foi libertada diante de Deus, como se, por isso, estivessem eximidos de toda servidão da carne pelo fato de que estão livres no tocante ao espírito. Então, visto que mesmo nessas constituições que parecem concernir ao reino espiritual pode haver alguma impropriedade, também entre estas mesmas se impõe discernir quais se devam ter por legítimas, por serem consistentes com a Palavra de Deus, as quais, por outro lado, não devem ter lugar entre os piedosos. Quanto ao regime civil, se falará em outra parte. Também quanto às leis eclesiásticas deixo de falar no momento, porquanto convirá consideração mais completa no livro IV, onde se tratará do poder da Igreja. Dessa discussão, porém, que seja esta a conclusão: não haveria dificuldade alguma a respeito desta matéria, como já disse, não fora porque muitos se sentem embaraçados por não distinguirem bem entre ordem civil e consciência; entre jurisdição externa ou política e jurisdição espiritual, que tem seu foro na consciência. Além disso, a dificuldade avulta porque Paulo preceitua que se deve obedecer ao magistrado não apenas por temor do castigo, como também em razão da consciência [Rm 13.1, 5]. Do quê se segue que também as consciências são obrigadas às leis civis. Pois se assim fosse, cairia por terra tudo quanto pouco antes dissemos, e agora estamos para dizer, acerca do regime espiritual. Para que se desate este nó, impõe-se, primeiramente, determinar o que seja a consciência e, com efeito, sua definição deve ser buscada na etimologia da palavra. Ora, assim como, quando pela mente e pela inteligência, os homens apreendem informações das coisas, do que procede o conhecer, donde também se tira a palavra conhecimento, assim, quando eles têm o senso do juízo divino, como se fosse uma testemunha a si jungida, que não lhes permite ocultar seus pecados sem que sejam arrastados como réus diante do tribunal do juiz, esse senso é chamado consciência. Ora, a consciência é um como que intermediário entre Deus e o homem, porque não permite que em si próprio o homem suprima o que conhece, mas o persegue até o ponto em que o leve à convicção de culpa. Isto é o que Paulo entende quando ensina que a consciência, igualmente, dá testemunho aos homens, quando os pensamentos os acusam ou os absolvem no juízo de Deus[Rm 2.15, 16]. O simples conhecimento poderia residir no homem, como que incubado. Portanto, este senso que impele o homem ao juízo de Deus é como que um guarda postado junto ao homem, que observa e espreita todos seus segredos, para que nada permaneça sepultado em trevas. Do que também provém este velho provérbio: A consciência é mil testemunhas. Pela mesma razão, também Pedro estatuiu como tranqüilidade de espírito “a perquirição de uma boa consciência para com Deus” [1Pe 3.21], quando, persuadidos da graça de Cristo, nos apresentamos diante de Deus destemidamente. E o autor da Epístola aos Hebreus, ao estatuir que “já não temos consciência de pecado” [Hb 10.2], declara que somos tidos por livres ou absolvidos, para que o pecado não mais nos acuse.

João Calvino