Total de visualizações de página

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

É IMPROCEDENTE O ARGUMENTO EM PROL DO VALOR JUDICIAL DAS OBRAS CALCADO EM PASSAGENS BÍBLICAS NAS QUAIS SE ALEGA A RETIDÃO PESSOAL E SE PRETENDE SER JULGADO POR ELAS

Combatem, também, à base dessas passagens, nas quais os fiéis oferecem ousadamente sua justiça para que seja examinada pelo juízo de Deus e desejam, em conformidade com ela, ser pessoalmente julgados. Dessa natureza são: “Julga-me, ó Senhor, segundo minha justiça e segundo minha inocência, que há em mim” [Sl 7.8]. Igualmente: “Ouve, ó Deus, minha justiça; provaste meu coração e me visitaste de noite, e iniqüidade não se achou em mim” [Sl 17.1, 3]. Também: “O Senhor me retribuirá em conformidade com minha justiça, e em conformidade com a pureza de minhas mãos me dará em paga, porque tenho guardado os caminhos do Senhor, nem me tenho afastado impiamente de meu Deus. E serei imaculado, e me guardarei de minha iniqüidade” [Sl 18.20, 21, 23]. Ainda: “Julga-me, Senhor, porque tenho andado em minha inocência; não me assentei com os homens falsos; não tomarei parte com os que empreendem coisas iníquas. Não dês minha alma à perdição com os ímpios, com os homens sanguinários minha vida, em cujas mãos há iniqüidades, cuja destra está repleta de suborno. Eu, porém, tenho andado na inocência” [Sl 26.1, 4, 9-11]. Já falei a respeito da confiança que os santos parecem assumir para si simplesmente com base nas obras. Estas passagens, porém,que para isso adicionamos aqui não nos causarão muito empecilho, caso sejam tomadas em conformidade com sua peri,stasin [p$rístasin], isto é, seu contexto ou, como dizem vulgarmente, sua circunstância. Essa peri,stasij [p$rístasis] é, com efeito, dúplice, pois por si mesmos não pretendem que se proceda a uma devassa total, de sorte que, em vista do teor da vida inteira, ou sejam condenados, ou sejam absolvidos; ao contrário, trazem a juízo uma causa especial para ser debatida, não que arroguem para si justiça com respeito à perfeição divina, mas em comparação com os ímpios e celerados. Primeiro, quando se trata de como o homem é justificado, não se indaga apenas como tenha boa causa em alguma coisa particular, mas uma como que perpétua harmonia de justiça pela vida inteira. Com efeito, os santos, enquanto imploram o juízo divino a comprovar-lhes a inocência, não se apresentam a si mesmos isentos de toda culpa e irrepreensíveis em todo aspecto, mas, enquanto em sua mera bondade fixam a confiança da salvação, contudo, confiados em que ele é o defensor dos pobres afligidos, destituídos do direito e da eqüidade, a ele recomendam, inteiramente, a causa em que, embora inocentes, são oprimidos. Enquanto, porém, com os adversários comparecem diante do tribunal de Deus, não se gabam de uma inocência que, se perscrutada rigorosamente, tiver que corresponder à pureza de Deus, mas porque sabem que, ante a maldade, a improbidade, a astúcia, a impiedade dos adversários, são conhecidas e aprazíveis a Deus sua sinceridade, justiça, candidez e pureza, não se arreceiam de invocá-lo como seu juiz entre si e eles. Assim, quando Davi dizia a Saul: “Dê o Senhor a cada um segundo sua justiça e sua verdade” [1Sm 26.23], não entendia que o Senhor pessoalmente examinasse a cada um e o recompensasse conforme seus méritos, mas dava testemunho ao Senhor de quão grande fosse sua inocência em comparação com quão grande era a iniqüidade de Saul. E Paulo, deveras, quando se exalta com esta glorificação pessoal, que desfruta de bom testemunho da consciência de que se conduzira com candidez e integridade na Igreja de Deus [2Co 1.12], não quer suster-se diante de Deus apoiado em glorificação pessoal propriamente dita; ao contrário, compelido pelas calúnias dos ímpios, contra toda e qualquer maledicência dos homens afirma sua fidelidade e probidade, que saiba ser aceitável à divina complacência. Pois conhecemos o que ele diz em outro lugar, a saber, não tinha em si consciência de nenhuma coisa má, contudo, não se justifica nisso [1Co 4.4]. Ora, obviamente sabia que o juízo de Deus em muito transcende a miopia humana. Logo, por mais que, sendo-lhes Deus testemunha e juiz, os piedosos defendem sua inocência contra a hipocrisia dos ímpios, entretanto, onde se trata somente com Deus, clamam todos a uma voz: “Se observares a iniqüidade, Senhor, quem, Senhor, se manterá firme?” [Sl 130.3]. Igualmente: “Não entres em juízo com teus servos, porque a teus olhos não será tido por justo nenhum vivente” [Sl 143.2]; e, desconfiados de suas obras, com prazer cantam: “Tua bondade é melhor que a vida” [Sl 63.3].

João Calvino