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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

O SENTIDO REAL DAS PASSAGENS DA ESCRITURA QUE DENOMINAM DE JUSTIÇA ÀS OBRAS DA LEI E DIZEM QUE O HOMEM É JUSTIFICADO POR MEIO DELAS

Mas, de fato, muito mais difícil parecem aquelas passagens que não só dignificam as boas obras com a título de justiça, mas ainda afirmam ser o homem por elas justificado. Numerosíssimas são aquelas da primeira modalidade, nas quais as observâncias dos mandamentos são chamadas de “justificações” ou “justiças”. Do outro gênero, é exemplo o que se tem em Moisés: “E será para nós justiça, quando
tivermos cuidado de cumprir todos estes mandamentos perante o Senhor nosso Deus,
como nos tem ordenado” [Dt 6.25]. Se, porém, objetas que essa é uma promessa
legal, a qual, anexa a uma condição impossível, nada prova, outras há acerca das
quais não podes alegar o mesmo, a saber: “Em se pondo o sol, sem falta lhe restituirás
o penhor; para que durma em sua roupa, e te abençoe; e isto te será para justiça
diante do Senhor teu Deus” [Dt 24.13]. De igual teor é o que diz o Profeta: o zelo em
vingar o ultraje de Israel foi imputado a Finéias por justiça [Sl 106.30, 31].
Portanto, os fariseus de nosso tempo pensam que aqui têm amplo motivo de
exultação. Ora, quando dizemos que, estabelecida a justiça pela fé, cai por terra a
justificação pelas obras, com o mesmo direito argumentam: Se a justiça procede das
obras, portanto é falso dizer que é só pela fé que somos justificados. Não há que
estranhar que eu admita que os preceitos da lei são chamados justiças, pois de fato
eles o são, embora se deva advertir aos leitores de que os gregos verteram com
pouca habilidade a palavra hebraica hukkim [<yqjÇç% – hWqq'm] por dikaiw,mata
[dikai)m&t& – justificações], em vez de editos. Quanto a esta palavra, no entanto,
renuncio de bom grado à pendência.
Com efeito, tampouco negamos à lei de Deus que contenha ela a justiça perfeita.
Ora, visto que somos devedores de tudo o que preceituou, ainda quando nos tenhamos
desincumbido de sua plena obediência, somos servos inúteis [Lc 17.10]. Todavia,
visto que o Senhor a dignou da honra de justiça, não subtraímos o que ele deu. Confessamos,
pois, de boa vontade, que a perfeita obediência da lei é justiça; a observância
de cada mandamento é parte da justiça; desde que também nas demais partes se contenha
toda a soma da justiça. Negamos, porém, que tal forma de justiça exista em
alguma parte. E por isso excluímos a justiça da lei, não porque em si seja ela imperfeita
e defectiva, mas porque, em razão da fraqueza de nossa carne, ela jamais existirá.
Não obstante, a Escritura chama justiças não simplesmente aos preceitos do
Senhor, mas atribui também às obras dos santos esse título. Como quando menciona
que Zacarias e sua esposa haviam andado nas justiças do Senhor [Lc 1.6], obviamente,
enquanto assim fala, estima as obras mais da natureza da lei do que da própria
condição delas mesmas. E, uma vez mais, aqui é preciso observar o que eu disse
há pouco: que proveniente da incúria do tradutor grego, não se deve estatuir uma lei.
Mas, porque Lucas nada quis mudar na versão recebida, tampouco eu contenderei.
Pois, para justiça ordenou Deus aos homens essas coisas que na lei se contêm, mas
essa justiça não a conseguimos senão observando toda a lei, porquanto ela é corrompida
de toda e qualquer transgressão. Portanto, quando a lei nada prescreve
senão a justiça, se a ela contemplamos, justiças são seus mandamentos, um a um; se
olhamos para os homens por quem são guardados e os quais são transgressores em
muitas coisas, longe estão eles de conseguir o louvor da justiça de uma obra, e de
obra essa que sempre, em algum aspecto, em razão de sua imperfeição, é viciosa.

João Calvino