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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A ESCRITURA PROCLAMA REITERADAMENTE QUE A GLORIFICAÇÃO DE DEUS E O SENSO DE SUA MISERICÓRDIA SÃO MOTIVAÇÃO INDEFECTÍVEL ÀS BOAS OBRAS

E estas passagens da Escritura, na verdade bem poucas, propus apenas como um preâmbulo. Ora, se a intenção fosse considerá-las uma a uma, haveria de compilar um longo volume. Todos os Apóstolos estão saturados de exortações, admoestações e reprimendas mercê das quais o homem de Deus seja instruído a toda boa obra, e isto sem menção de mérito. Antes, pelo contrário, suas mais poderosas exortações derivam disto: que a salvação se granjeia por nenhum mérito nosso, senão unicamente pela misericórdia de Deus. Assim é que Paulo, quando numa epístola toda dissertou dizendo que nenhuma esperança de vida há para nós, a não ser na justiça de Cristo, ao chegar às exortações fundamenta toda sua doutrina sobre aquela mesma misericórdia de Deus que havia proclamado [Rm 12.1]. E, seguramente, esta única causa nos deveria ser suficiente: que Deus seja glorificado em nós [Mt 5.16]. Ora, se alguns não são tão veementemente afetados pela glória de Deus, no entanto a lembrança de seus benefícios é mui suficiente, a saber, que os incite a fazer o bem. Mas esses fariseus, porque, ao enaltecerem os méritos, talvez forçadamente conseguem algumas servis e compelidas observâncias da lei, dizem falsamente que nada temos porque exortamos às boas obras, enquanto não trilhamos a mesma vereda. Como se, deveras, Deus se deleitasse muito com tais observâncias, quando precisamente declara que ama ao que dá com alegria e proíbe que se dê alguma coisa com tristeza ou por necessidade! [2Co 9.7].235 Tampouco digo isto porque rejeite isto, ou negligencie o gênero de exortação que a Escritura usa repetidamente, para que não omita qualquer maneira de por todos os lados nos animar às boas obras, pois ela relembra o galardão que Deus “dará a cada um segundo suas obras” [Mt 16.27; Rm 2.6; 1Co 3.8, 14; 2Co 5.10]. Nego, porém, ser essa a única razão e mesmo a principal entre muitas. Ademais, não admito que daí se tome o ponto de partida. Além disso, discordo que se faça algo para engendrar méritos, como esses proclamam, como veremos mais adiante. Finalmente, nem é relevante a noção de mérito das boas obras, a menos que se dê precedência a essa doutrina de que somos justificados unicamente pelo mérito de Cristo, que é apreendido pela fé, mas não por algum mérito de nossas obras, visto que ninguém pode estar apto para o exercício da santidade, senão aqueles que sejam antes embebidos desta doutrina. O Profeta também expressa isto muito bem, quando assim dirige a Deus a palavra: “Em ti, Senhor, está a propiciação para que sejas reverenciado” [Sl 130.4], pois mostra que não existe nenhum culto de Deus, a menos que sua misericórdia seja reconhecida, sobre a qual somente ele está não só fundamentado, mas também firmemente estabelecido. Sobretudo digno é isto de ser notado, para que saibamos não só que o princípio de adorar-se corretamente a Deus é a confiança em sua misericórdia, mas ainda que o temor de Deus, que os papistas querem que seja meritório, ainda que não possa ser arrolado sob o título de mérito, contudo, está fundamentado no perdão e remissão dos pecados.

João Calvino