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sexta-feira, 21 de setembro de 2018

A TERCEIRA FUNÇÃO DA DOUTRINA DA LIBERDADE CRISTÃ É CONCEDER À CONSCIÊNCIA O LIVRE USO DAS COISAS HAVIDAS POR INDIFERENTES, AS CHAMADAS DIÁFORAS

A terceira função da doutrina da liberdade cristã é que não tenhamos por obrigação diante de Deus nenhuma das coisas externas que de si são a (– indiferentes]; de modo que seja permitido usá-las ou deixar de usá las, indiferentemente. Além disso, o conhecimento desta liberdade nos é sumamente necessário, o qual, se estiver ausente, nossa consciência não desfrutará de nenhum descanso, e não haverá fim para as superstições. Muitos hoje nos têm por néscios visto que defendemos ser lícito comer carne, e porque afirmamos que é livre observar certos dias e o uso de vestes e outras coisas afins; mas isto encerra maior importância do que vulgarmente se crê.
Com efeito, quando as consciências uma vez se enredilham em laço, entram em um longo e inextricável labirinto donde já não é fácil mostrar-se a saída. Se alguém começa a duvidar se porventura lhe é lícito usar linho nos lençóis, camisas, lenços, guardanapos, depois não estará seguro se pode usar cânhamo; e por fim começará inclusive a duvidar se é lícito usar estopa; pois consigo revolverá se porventura pode jantar sem guardanapos, ou se pode prescindir de lenços. Se a alguém parecer ilícito alimento um pouco mais refinado, por fim nem pão ordinário e iguarias comuns comerá tranqüilo diante de Deus, enquanto vem à mente que pode sustentar o corpo com víveres ainda mais baratos. Se nutre escrúpulo de beber vinho mais suave, a seguir nem vinho estragado beberá com boa paz de consciência; por fim, nem ousará tocar em água mais doce e mais limpa que outras. Finalmente, chegará a tal ponto que, como se diz, julgará ser ilícito caminhar por sobre uma palha atravessada no caminho. Ora, aqui não se trata de um ligeiro conflito de consciência, mas que a dúvida está em se Deus quer ou não que usemos de uma coisa, pois sua vontade deve preceder-nos a todos os desígnios e ações. Daqui uns, em desespero, necessariamente se arrojam a confusa voragem; outros, desprezando a Deus e alijando seu temor, na desgraça fazem para si caminho, do qual não sabem como se desvencilhar. Pois todos quantos se enredilharam em tais dúvidas, para onde quer que se volvam, não verão outra coisa senão escrúpulos da consciência.

João Calvino