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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

SEXTA PETIÇÃO: “E NÃO NOS DEIXES CAIR EM TENTAÇÃO, MAS LIVRA-NOS DO MAL”

A sexta petição [Mt 6.13], como dissemos, corresponde à promessa de que a lei de Deus seria gravada em nosso coração[Pv 3.3]; mas, visto que não obedecemos a Deus sem contínua luta, duros e árduos embates, aqui pedimos que sejamos equipados com armas e defendidos por proteção de tal natureza que estejamos aptos à vitória, pelo que somos avisados de que se faz necessário não apenas que a graça do Espírito nos abrande o coração interiormente, o dobre e o dirija à obediência de Deus, como também seu auxílio, mercê da qual nos torne invencíveis contra todas as ciladas e investidas violentas de Satanás. Ora as formas de tentações são de fato muitas e variadas. Ora, tentações são não só as concepções depravadas da mente a nos provocar à transgressão da lei, as quais ou nos sugere nossa própria concupiscência, ou as excita o Diabo, mas também aquelas coisas que de sua própria natureza não são más, entretanto, se fazem tentações por arte do Diabo, quando aos olhos de tal vulto se nos apresentam que, por sua interposição, somos afastados de Deus, ou dele nos arredamos. E de fato estas tentações são tanto de coisas prósperas quanto de coisas adversas. Das prósperas, coisas tais como as riquezas, e poder, as honras que o mais das vezes de seu fulgor e da aparência de bem que exibem embaçam a agudeza de visão dos homens e de seus regalos os engodam, assim que se vêem cativos de tais deslumbramentos, de sorte que, embriagados de tal encanto, a seu Deus esqueçam. Das adversas, coisas tais como a pobreza, os opróbrios, o desprezo, as aflições e outras coisas desse gênero, agravados pela aspereza e dificuldade dos quais percam o ânimo, alijem a confiança e a esperança, afim, de Deus inteiramente se alienem. Nesta sexta petição, rogamos de Deus, nosso Pai, não permita que cedamos a uma e outra de ambas essas espécies de tentações que, ou acesas em nós mediante nossa própria concupiscência, ou a nós propostas pela sutileza de Satanás, lutam contra nós; ao contrário, que antes nos sustente com sua mão e nos encoraje, para que, fortalecidos por seu poder, possamos postar-nos firmes contra todas as investidas do maligno inimigo, quaisquer cogitações que porventura nos introduza na mente. Então, suplicamos que tudo quanto se nos propõe que tenda para uma e outra dessas partes convertamos ao bem, isto é, não sejamos enfatuados com as coisas prósperas, nem sejamos abatidos com as adversas. Contudo, tampouco solicitamos aqui que de forma alguma sintamos quaisquer tentações, pelas quais nos é sumamente indispensável ser antes incitados, aguilhoados, espicaçados para que não nos prostremos excessivamente acomodados e apáticos. Ora, não foi sem razão que Davi desejava ser tentado [Sl 26.2], nem sem causa que o Senhor tenta diariamente a seus eleitos [Gn 22.1; Dt 8.2; 13.3], castigando-os por meio da ignomínia, da pobreza, da tribulação e outras espécies de cruz. Deus, porém tenta de um modo; Satanás, de outro modo. Este, para que perca, danifique, confunda, precipite; Deus, porém, para que, aos seus testando, quer prova de sua sinceridade; e, exercitando-a, solidifique sua força, mortifique sua carne, depure-a, cauterize-a, a qual, a menos que seja desse modo refreada, prorromperia em excessos e se ufanaria além da medida. Além disso, Satanás ataca os desarmados e despreparados, para que, desprevenidos, os esmague; Deus, juntamente com a tentação, provê saída favorável, de sorte que os seus possam sofrer pacientemente tudo quanto lhes impõe [1Co 10.13; 2Pe 2.9]. Bem pouco importa se entendemos pelo termo maligno o Diabo ou o pecado. O fato é que Satanás é o próprio inimigo que arma ciladas contra nossa vida, porém nos armou do pecado para nossa própria ruína. Portanto, eis nossa súplica: que não sejamos vencidos e levados de roldão por quaisquer tentações; ao contrário, nos postemos fortes, pelo poder do Senhor, contra todas as forças adversas pelas quais somos atacados, que é o contrário de sucumbir às tentações, de sorte que, recebidos a sua guarda e cuidados, e seguros em sua proteção, prevaleçamos invictos sobre o pecado, a morte, as portas do inferno [Mt 16.18] e todo o reino do Diabo, que significa ser livrado do maligno. Neste ponto, deve-se também notar, diligentemente, que não compete a nossas próprias forças travar combate com o Diabo, tão grande guerreiro que é, nem suportar-lhe a força e o ímpeto. De outra sorte em vão, ou em zombaria, se rogaria de Deus o que teríamos em nós mesmos. Obviamente, aqueles que a tal combate se preparam na confiança de si mesmos não compreendem suficientemente com quão aguerrido e bem equipado adversário têm que enfrentar. Então, rogamos que sejamos livrados de seu poder, como da boca de algum leão tresloucado e furioso [1Pe 5.8], disposto a dilacerar com seus dentes e garras, tragar com suas fauces, a não ser que o Senhor nos arrebate do meio da morte; sabendo, contudo, ao mesmo tempo, que se o Senhor estiver presente, e lutar por nós, ainda que nos mantenhamos calados, “em seu poder faremos proezas” [Sl 60.12; 118.16]. Que outros confiem, como haverão de querer, na própria capacidade e forças do livre-arbítrio, os quais realmente parecem que o possuem; a nós seja bastante que, no mero e singular poder de Deus nos mantenhamos firmes e nos mostremos fortes. Esta súplica, porém, compreende mais do que aparente à primeira vista, pois se o Espírito de Deus é nosso poder para entrarmos em luta com Satanás, não poderemos alcançar vitória antes que, cheios dele, sejamos despojados de toda fraqueza de nossa carne. Portanto, enquanto pedimos que sejamos livrados de Satanás e do pecado, suplicamos ser, continuamente, enriquecidos de novos eflúvios da graça de Deus, até que, deles plenamente saturados, triunfemos sobre todo mal. A alguns parece ser impróprio e acintoso suplicar-se a Deus que não nos induza à tentação, quando é contrário a sua natureza tentar-nos, como o atesta Tiago [1.13]. Mas a questão já foi em parte resolvida, porque de todas as tentações pelas quais somos vencidos nossa concupiscência é propriamente a causa [Tg 1.14], e por isso sustêm a culpa. Tampouco, Tiago quer dizer outra coisas senão que em vão e injustamente se transferem as transgressões para Deus, as quais somos compelidos a imputar a nós mesmos, porque temos consciência de sermos culpados por elas. Entretanto, isso não impede que Deus, quando assim lhe parecer bem, nos abandone a Satanás, nos lance a um sentimento réprobo e a sórdidas paixões, e assim nos induza às tentações, por um juízo deveras justo, embora não raro oculto, porquanto a causa é freqüentemente escondida aos homens, a qual, no entanto, é nele certa. Do quê se conclui não ser esta uma expressão imprópria, se formos persuadidos de que não sem razão ele mesmo tantas vezes ameaça que estas haverão de ser provas seguras de sua vingança, quando os réprobos são afligidos de cegueira e dureza de coração.

João Calvino