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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

QUINTA PETIÇÃO: “E PERDOA NOSSAS DÍVIDAS, ASSIM COMO PERDOAMOS NOSSOS DEVEDORES”

Segue-se: “Perdoa nossas dívidas” [Mt 6.12]. Nesta petição e na próxima Cristo enfeixou concisamente tudo quanto concerne à vida celeste, da mesma forma que, apenas nestes dois membros, se firma o pacto espiritual que Deus estabeleceu para a salvação de sua Igreja: “Escreverei minhas leis em seus corações e lhes serei propício para com a iniqüidade” [Jr 31.33; 33.8]. Aqui, Cristo começa da remissão dos pecados; então, logo em seguida, juntará a segunda graça: que Deus nos proteja pelo poder de seu Espírito e nos sustente com seu auxílio, para que nos postemos invencíveis contra todas as tentações. Cristo designa de dívidas aos pecados, porque lhes devemos a pena; tampouco poderíamos de qualquer modo satisfazê-la, a menos que fôssemos desobrigados por esta remissão, que é um perdão de sua misericórdia gratuita, quando ele mesmo generosamente apaga essas dívidas, não recebendo de nós nenhum pagamento; ao contrário, satisfazendo-se em Cristo por sua própria misericórdia, o qual a si mesmo se entregou, uma vez, em compensação [Rm 3.24]. Portanto, todos quantos, com seus merecimentos ou com os de outros, confiam estar satisfazendo a Deus e crêem que tais satisfações podem comprar a remissão dos pecados, de modo algum podem chegar a conseguir a remissão gratuita e orar a Deus desta forma, não fazem outra coisa senão firmar sua própria acusação e ratificar com seu próprio testemunho sua condenação. Se confessam devedores, a não ser que por um perdão gratuito sua dívida seja perdoada; este perdão, porém, eles não o aceitam; antes, o recusam ao apresentar diante de Deus seus méritos e satisfações; porque dessa forma não imploram sua misericórdia, senão que apelam para seu juízo. Aqueles, porém, que sonham para si perfeição que elimine a necessidade de suplicar perdão, contam com discípulos a quem o comichão dos ouvidos impele aos enganos, desde que fique patente que foram afastados de Cristo todos e quantos tais discípulos adquirem para si, uma vez que, ensinando a todos a confessarem sua culpa, a nenhum ele admite senão a pecadores; não que fomente os pecados com afagos, mas porque sabia que os fiéis nunca se despem inteiramente dos vícios de sua carne, de modo que não permaneçam sempre sujeitos ao juízo de Deus. Deve se, com efeito, almejar, e também lutar afincadamente, para que, havendo-nos desincumbido de todos os afazeres de nosso ofício, deveras nos felicitemos diante de Deus de estarmos puros de toda mancha. Mas, visto que a Deus apraz restaurar em nós, pouco a pouco,sua imagem, de sorte que sempre resida algo de contaminação em nossa carne, foi necessário que o remédio não fosse de modo nenhum negligenciado. Porque, se em função da autoridade a si dada pelo Pai, Cristo nos manda recorrer, por todo o curso da vida, à deprecação de culpa, a quem serão toleráveis os novos mestres, que tentam deslumbrar os olhos dos simplórios com o espectro de inocência perfeita, de sorte que confiem poder tornar-se isentos de toda culpa? João atesta que isso outra coisa não é senão fazer a Deus mentiroso [1Jo 1.10]. Pelo mesmo procedimento, esses malditos embusteiros dividem em duas partes o pacto divino, no qual se contém nossa salvação; porque dos dois pontos suprimem um, com o qual o desfazem totalmente, agindo não só de modo sacrílego, mas também são ímpios e cruéis, porquanto cobrem de desespero as míseras almas, na verdade pérfidos para consigo mesmos e para com os semelhantes a si, visto que se induzem a um estado de inércia diametralmente oposto à misericórdia de Deus. O que, porém, objetam, que ao anelarmos pela vinda do reino de Deus, ao mesmo tempo buscamos a abolição do pecado, é totalmente pueril, visto que na primeira parte da Oração do Senhor se nos propõe a suprema perfeição, mas aqui nossa fraqueza. Daí, estas duas coisas se harmonizam convenientemente entre si, a saber, que aspirando à meta não negligenciemos os remédios que nossa necessidade exige. Finalmente pedimos que perdão nos seja facultado “como nós mesmos perdoamos a nossos devedores” [Mt 6.12]; isto é, como perdoamos a todos aqueles que nos fizeram algum agravo ou injúria, quer por palavra ou por ato. Não que seja prerrogativa nossa remitir a culpa de delito e ofensa, a qual pertence a Deus só [Is 43.25].
Com efeito, esta é nossa remissão: alijar deliberadamente do coração a ira, o ódio, o desejo de vingança, e em deliberado esquecimento esmagar a lembrança das injustiças recebidas. Por esta razão, não se pode pedir de Deus a remissão dos pecados, a menos que nós mesmos perdoemos também as ofensas a todos quantos são ou foram injustos conosco. Se ao contrário retemos no coração algum ódio, meditamos e ocasionalmente cogitamos alguma represália contra alguém; mais ainda, se realmente não nos diligenciarmos por voltar ao favor de nossos inimigos, e os cativarmos com toda espécie de obséquios, e granjearmos sua estima, com esta prece suplicamos a Deus que não nos propiciea remissão dos pecados, pois estamos pedindo que ele nos faça como fazemos aos outros [Mt 7.12]. Isto é, realmente pedimos que não nos faça, a não ser que nós mesmos o façamos. Aqueles, pois, que são desta natureza, o que conseguem com sua petição, a não ser juízo mais grave? Por fim, impõe-se observar que esta condição – que Deus nos perdoe, assim como perdoamos a nossos devedores – não é adicionada porque com nosso perdão que a outros concedemos mereçamos o perdão, como se ele fosse a causa expressa. Na verdade, com esta palavra em parte o Senhor quis consolar-nos ante a fraqueza da fé, pois acrescentou isto como um sinal pelo qual sejamos persuadidos de que tão certamente nos foi por ele feita a remissão dos pecados, quão certamente estamos cônscios de que ela será por nós feita a outros, quando nosso coração está vazio de todo ódio, rancor e vingança. E além disso quis com esta nota dar a entender que ele apaga do número de seus filhos aqueles que são fáceis de vingar-se e difíceis em perdoar, se obstinam em suas inimizades; e que, guardando seu mau coração contra o próximo, pedem a Deus que sejam perdoados, enquanto eles mesmos mantêm sua ira contra os demais; para que não se atrevam a invocá-lo como Pai, conforme Cristo mesmo o declarou através de Lucas [11.4].

João Calvino