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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

AS PASSAGENS BÍBLICAS QUE FALAM DE RIQUEZA OU TESOUROS NOS CÉUS NÃO COMPROVAM O MÉRITO ÀS OBRAS

Há outras passagens quase semelhantes às que acabamos de expor, a saber: “Granjeai amigos com as riquezas da injustiça; para que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos” [Lc 16.9]; “Manda aos ricos deste mundo que não sejam altivos, nem ponham a esperança na incerteza das riquezas, mas em Deus, que abundantemente nos dá todas as coisas para delas usufruirmos; que façam bem, enriqueçam em boas obras, repartam de boa mente, e sejam comunicáveis; que entesourem para si mesmos um bom fundamento para o futuro, para que possam alcançar a vida eterna” [1Tm 6.17-19]. Ora, as boas obras estão sendo comparadas com as riquezas que haveremos de usufruir na bem-aventurança da vida eterna. Replico que jamais haveremos de ter acesso à verdadeira compreensão, a não ser que nossos olhos se volvam para o propósito a que o Espírito dirige suas palavras. Se é verdadeiro o que Cristo diz: que nosso coração está posto exatamente onde está nosso tesouro [Mt 6.21]; como os filhos deste mundo costumam viver absorvidos em granjear aquelas coisas que fazem as delícias da presente vida, assim, depois que tiverem aprendido que esta vida logo se desvanecerá como um sonho, os fiéis são exortados a cuidar que as coisas que são verdadeiramente usufruídas se transfiram para aquele lugar onde haverão de ter vida plena. Devemos, pois, imitar o que fazem aqueles que decidem emigrar para algum lugar onde escolheram fixar residência permanente. Adiante enviam eles seus bens, não com pesar de se privarem deles por certo tempo, porque se julgam mais felizes quando as coisas boas estão onde haverão de estar por um longo tempo. Se cremos que o céu é nossa pátria, é mais conveniente que transfiramos para lá nossas posses do que retêlas aqui, onde, por súbita migração, escapem de nosso poder. Como, porém, as transferiremos? Certamente compartilhando-nos com as necessidades dos pobres, aos quais tudo quanto se provê o Senhor computa como dado a ele mesmo [Mt 25.40]. Donde esta grandiosa promessa: “Aquele que ao pobre dá com liberalidade, a juros está dando ao Senhor” [Pv 19.17]. Igualmente: “Aquele que semeia generosamente, com abundância ceifará” [2Co 9.6]. Ora, na mão do Senhor se depõem as cousas que se devotam aos irmãos por dever de caridade. Visto que ele é um depositário de boa fé, haverá de um dia restituir com juro transbordante. Portanto, de tão grande importância são para com Deus nossos deveres, que sejam como que riquezas nossas escondidas em sua mão! E quem sente receio de assim falar, quando tantas veze se tão abertamente a Escritura atesta isto mesmo? Por outro lado, se alguém quiser da mera benignidade de Deus saltar à dignidade das obras, por estes testemunhos não será ajudado a consolidar esse erro. Pois daí não podes concluir nada corretamente, senão a mera disposição da indulgência divina para conosco, uma vez que, a fim de animar-nos a fazer o bem, ainda que em si mesmas sejam indignas sequer de seu olhar, todavia, nenhuma das observâncias que lhes exibimos ele deixa perdida.

João Calvino