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sábado, 22 de setembro de 2018

ORAÇÕES RESPONDIDAS AINDA QUANDO NÃO CONFORMADAS AO PRECEITO DIVINO, E ROGOS DE SERVOS DE DEUS EM DISPARIDADE COM SUA ORDENANÇA

Daqui nascem numerosas questões, porquanto a Escritura faz menção de Deus haver conferido cumprimento a certas orações que, no entanto, irromperam de ânimomui longede sereno ou comedido. De fato, com justa causa, inflamado do fervor da ira e da vingança, Jotão devotou os habitantes de Siquém à destruição, o qual sobreveio mais tarde [Jz 9.20]. Dando provimento a essa execração, é como se Deus aprovasse impulsos mal ordenados. Esse mesmo fervor arrebatou também a Sansão, quando dizia: “Fortalece-me, ó Deus, para que tome vingança dos incircuncisos” [Jz 16.28]. Ora, ainda que fosse misturado com algum zelo justo, entretanto, aí imperou o desejo excessivo, e portanto vicioso de vingança. Deus atendeu. Do quê parece poder-se concluir que ainda quando as orações não sejam conformadas ao prescrito na Palavra, no entanto alcançam seu efeito. Minha resposta é que, com exemplos particulares, a lei perpétua não é abolida; além do mais, impulsos por vezes especiais foram infundidos a uns poucos homens, nos quais aconteceu que a razão lhes fosse contrária da razão do povo comum. Deve-se notar, pois, esta resposta de Cristo, quando os discípulos desejariam inconsideradamente imitar o exemplo de Elias, dizendo que eles não sabiam de que espírito haviam sido dotados [Lc 9.55]. Mas é preciso ir além: nem sempre agradam a Deus as orações a que responde. No entanto, no que diz respeito ao exemplo, à luz de provas claras se faz manifesto o que a Escritura ensina, isto é, que ele socorre aos miseráveis e ouve os gemidos daqueles que, injustamente aflitos, lhe imploram ajuda; por isso executa seus juízos, enquanto a ele sobem as queixas dos pobres, ainda que indignas de que alcancem sejam o que for. Ora, quantas vezes aplicando punições acerca da crueldade, das rapinagens, da violência, do desregramento e de outros crimes dos ímpios, contendo-lhes a audácia e o furor, subvertendo-lhes também o poder tirânico, testificou levar ajuda aos indignamente oprimidos, os quais, no entanto, ao orarem, davam golpes incertos? E um Salmo ensina claramente que não são destituídas de efeito as orações que, no entanto, não penetram o céu pela fé. Pois ele combina orações que, do senso da própria natureza, a necessidade arranca aos incrédulos, não menos que aos piedosos, aos quais, no entanto, os fatos demonstram que Deus se faz propício [Sl 107.6, 13, 19, 28]. Deus, porventura, com tal condescendência atesta que elas lhe são agradáveis? De fato, sua misericórdia ilustra muito bem a circunstância de que, inclusive, as orações dos incrédulos não são recusadas; e além de estimular aos seus a que orem, vendo que mesmo os gemidos dos ímpios às vezes não deixam de alcançar o efeito desejado. Deste modo dissemos que Deus se deixou comover pelo arrependimento simulado de Acabe [2Rs 21.29], para que, mediante esta evidência, provasse quão pronto está a ouvir seus eleitos, quando para aplacá-lo eles exibem conversão verdadeira. E por isso no Salmo ele contende com os judeus, porque, havendo experimentado ser ele acessível a seus rogos [Sl 106.8-12], hajam revertido pouco depois à obstinação de sua mente [Sl 106.13-43]. Isto também se patenteia cristalinamente da história dos Juízes: de fato os israelitas choraram muitas vezes, embora suas lágrimas fossem enganosas, no entanto foram libertados das mãos dos inimigos. Portanto, assim como Deus projeta indiscriminadamente seu sol sobre bons e maus [Mt 5.45], assim tampouco despreza o pranto daqueles cuja causa é justa e cujas misérias são dignas de auxílio. Não obstante, ele não os ouve para salvá-los, não mais do que demonstra salvar aos que desprezam sua bondade quando os provê de alimento.278 Muito mais difícil parece ser a questão em relação a Abraão e a Samuel, dos quais um orou em favor dos habitantes de Sodoma, sem ter instituída nenhuma palavra de Deus [Gn 18.23-33]; o outro inclusive orou em favor de Saul contra clara proibição [1Sm 15.11; 16.1]. A mesma é a razão de Jeremias, que pediu fosses sustada a ruína da cidade [Jr 32.16-25], porque, embora sofresse repulsa, contudo parece improcedente dizer que eram destituídos de fé. Com efeito, espero que esta solução satisfaça aos leitores moderados: os que se escudaram em princípios gerais, através dos quais Deus ordena que se contemple também com misericórdia os indignos, não eram inteiramente destituídos de fé, embora, na própria natureza do caso, a opinião os haja enganado. Em alguma parte, Agostinho escreve sabiamente: “Como”, diz ele, “os santos oram em fé quando pedem a Deus contra a fé que ele decretou? Sem dúvida, porque oram segundo sua vontade, não aquela vontade secreta e imutável, mas aquela que lhes inspira, para que os ouça de outro modo, como sabiamente distingue.”279 Certamente é uma sentença admirável, porque por seu incompreensível desígnio de tal forma tempera concretização das coisas, que não sejam contrárias às preces dos santos, que são, a um tempo, entrelaçadas de fé e de erro. Entretanto, isso não deve valer mais para imitação, a ponto de servir de justificativa aos próprios santos, os quais não nego que excedem o limite. Por isso, onde não haja uma promessa definida, deve-se rogar a Deus em termos condicionais. Com isto se coaduna essa afirmação de Davi: “Desperta-te para com o juízo que ordenaste” [Sl 7.6], porquanto prova que tinha uma promessa especial para pedir o benefício temporal.

João Calvino