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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

A VIDA ETERNA, OU O REINO DOS CÉUS, SÃO GALARDÃO OU RECOMPENSA NO SENTIDO DE HERANÇA, NÃO DE SALÁRIO

Do termo galardão não há por que concluamos que nossas obras sejam a causa de nossa salvação. De princípio, que isto seja solidamente estabelecido em nosso coração: o reino dos céus não é estipêndio de servos, mas herança de filhos [Gl 4.7], da qual só se assenhorearão aqueles que forem pelo Senhor adotados por filhos, não por qualquer outra causa, mas em razão desta adoção. “Pois o herdeiro não será o filho da escrava, mas, sim, o filho da livre” [Gl 4.30]. E, com efeito, nessas próprias passagens em que o Espírito Santo promete que a glória eterna haverá de ser um galardão às obras, chamá-la expressamente herança, mostra que ela nos provém de outra parte. Assim, quando chama os eleitos à sua posse, Cristo enumera as obras que recompensa com a remuneração do céu, mas, ao mesmo tempo, acrescenta que se possuirá por direito de herança [Mt 25.34-37]. Assim, Paulo prescreve aos servos que executarem fielmente o que lhes é da obrigação e esperam recompensa da parte do Senhor, porém adiciona que é uma recompensa de herança [Cl 3.24]. Vemos, pois, como Cristo e seus apóstolos se precavêem muito bem para não atribuirmos às obras a bem-aventurança eterna, e, sim, à adoção divina.249 Entretanto, por que, ao mesmo tempo, fazem menção das obras? Com um só exemplo da Escritura se elucidará esta questão. Antes do nascimento de Isaque fora prometida descendência a Abraão, na qual haveriam de ser abençoadas todas as nações da terra, a propagação de uma descendência que se haveria de igualar às estrelas do céu, às areias do mar e outras coisas semelhantes. Muitos anos depois, como fora ordenado pelo oráculo, Abraão se cinge para imolar o filho [Gn 22.3]. Tendo-se desincumbido desta obediência, ele recebe a promessa: “Jurei por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isto, e não poupaste a teu próprio filho unigênito, te abençoarei, e multiplicarei tua descendência como as estrelas do céu e as areias do mar; tua descendência possuirá as portas de seus inimigos, e em tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque obedeceste à minha voz” [Gn 22.16-18]. Que estamos ouvindo? Porventura Abraão mereceu a bênção por sua obediência, cuja promessa recebera antes que lhe fosse feita a injunção? De fato sustentamos aqui, sem rodeios, que o Senhor galardoa as obras dos fiéis com estas bênçãos que já lhes foram dadas antes que as obras fossem cogitadas, enquanto não vê nenhuma causa por que lhes fizesse beneficência, exceto sua misericórdia.

João Calvino